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Flexibilização do isolamento e manifestações naturalizam as mortes: Bolsonaro tinha razão?

Artigo de Nabil Bonduki*

Não fizemos a lição de casa, o número de casos e de mortes tem crescimento exponencial

A irresponsabilidade tomou conta do país e, agora, ninguém sabe mais o que está valendo. Aos poucos estamos caminhando para o “salve-se quem puder”, em um voo cego, com o governo federal sonegando dados e os estados e municípios sem saber bem o que fazer.

Se estávamos indo mal no enfrentamento da pandemia, agora estamos ainda pior. Não fizemos a lição de casa, o número de casos e de mortes tem crescimento exponencial mas governadores e prefeitos estão flexibilizando a quarentena, enquanto atos contra o presidente geram aglomerações físicas que colocam em risco os próprios manifestantes, suas famílias e uma maior disseminação do vírus.

Durante cem dias, Bolsonaro foi condenado por um amplo leque político (governadores, aliados neoliberais, opositores de esquerda, ONGs, mídia e autoridades sanitárias), por defender a abertura do comercio, o isolamento vertical e manifestações de rua, com aglomerações em meio à pandemia. Suas atitudes são consideradas um crime de responsabilidade por expor a população ao risco de contrair e difundiu um vírus de alta letalidade.

O país ficou dividido entre os que defendiam a vida e os negacionistas, que desconsideravam as recomendações sanitárias e naturalizavam a pandemia e suas consequências, como as mortes e o colapso do sistema de saúde.

A confusão decorrente dos sinais contraditórios emitidos pelas autoridades, contribuiu para que o isolamento físico, recomendado como a única “vacina” contra o vírus, fosse um dos mais ineficientes do planeta.

O ponto mais baixo de movimentação de pessoas no país ocorreu no final de março: 35% do fluxo de um dia normal. Países fortemente afetados, Espanha e Itália atingiram, respectivamente, 11% e 14%. A Argentina obteve um índice ainda menor, chegando a 9% da movimentação de um dia normal. País com características semelhantes, nosso vizinho tem 12,8 mortos por um milhão de habitantes, enquanto o Brasil alcançou 172 mortos por milhão, cerca de 14 vezes mais, mostrando a eficiência da quarentena, que lá foi prorrogada até o final de junho.

Mas Bolsonaro não foi o único responsável pelo baixos índices de isolamento. Governadores e prefeitos, que institucionalizaram a quarentena, não implementaram políticas públicas complementares que possibilitasse à população vulnerável cumprir essa determinação.

O desastre do Rio de Janeiro, onde o governador Wilson Witzel, imerso em um mar de lama e de mortos, sequer conseguiu colocar em funcionamento os hospitais de campanha que contratou, é um caso extremo de incompetência e escárnio pela população.

Já em São Paulo, onde a gestão da saúde vem conseguido resultados satisfatórios, prefeitura e governo do Estado foram incapazes de formular uma estratégia para garantir um isolamento efetivo e uma redução dos casos que agora pudesse permitir uma flexibilização com segurança sanitária. Como escrevi nessa coluna em 11 de maio, “Enquanto Bolsonaro, no jet sky, diz ‘e daí’, Bruno e Doria não sabem como enfrentar a pandemia”.

Não foram criadas barreiras sanitárias, de modo que o vírus se alastrou do centro expandido, onde chegou primeiro, para a periferia do município, região metropolitana e interior do Estado. Ao menos 558, dos 667 municípios do Estado, tem casos confirmados e o vírus continua se espalhando. Testes massivos não foram realizados.

Não foram criados programas de proteção social complementares à renda emergencial em escala compatível. A maior parte das famílias que tem crianças na rede de ensino não está recebendo compensação pela perda da alimentação escolar, restrita aos cadastrados no Bolsa Família.

O programa municipal Cidade Solidária tem distribuído, com o apoio da sociedade civil, cerca de 100 mil cestas básicas por mês, o que corresponde a cerca de 2% das famílias paulistanas. Apenas para comparar com um caso de sucesso (eles existem no Brasil!), Belo Horizonte, com menos de um quarto da população, criou um programa de auxílio que distribui 400 mil cestas básicas por mês.

Praticamente nada foi feito para atenuar a superocupação das moradias precárias, como a utilização de hoteis para alojamento provisório dessa população. Em São Paulo, o problema afeta três milhões e é especialmente grave para 250 mil pessoas que dividem o dormitório com outras 5 ou mais moradores.

Os distritos centrais, que concentram cortiços e ocupações de edifícios ociosos, como Pari, Belém, Brás, República e Santa Cecília, têm os mais altos índices relativos de mortes da cidade: uma morte para cada 800 habitantes.

Não se garantiu para a população de baixa renda o acesso livre e gratuito à internet, recurso essencial no isolamento para a educação à distância, o home office, a comunicação com familiares, a sociabilidade e o entretenimento.

Apenas a partir de hoje, mais de dois meses depois da prefeitura ter reduzido a frota de ônibus, adotou-se a orientação dos veículos apenas transportarem passageiros sentados. O transporte coletivo se tornou um dos vetores de transmissão do vírus. A restrição à circulação de automóveis mostrou-se ineficiente.

Como já foi alertado pela própria OMS e pesquisadores de diferentes universidades, o país ainda não atingiu o pico da pandemia. Pelo contrário: a média diária de falecimentos pela atual pandemia continua crescendo, alcançando na última semana 1.013 no país contra 883 na semana anterior.

Em São Paulo, onde o mero anúncio de flexibilização do isolamento feito pelo governo provocou maior circulação de pessoas, que atingiu 53% da movimentação normal na 5ª feira.

O próprio governo, que está reabrindo o comercio, prevê um aumento expressivo de casos, que devem alcançar, no final de junho, entre 190 mil a 265 mil, ou seja, de 70 mil a 145 mil novos casos serão acrescentados ao 118 mil existentes no final de maio. Embora o índice de ocupação das UTI seja relativamente confortável nesse momento (75%), a explosão de casos pode alterar a situação, considerando-se ainda que muitas cirurgias e internações por outras doenças estão sendo adiadas.

No Rio de Janeiro, a situação é muito mais crítica, com a aceleração do número de mortes e o sistema de saúde próximo do colapso, enquanto camelôs e escolas da rede pública estão sendo autorizados a voltar a funcionar.

Nesse contexto, o lockdown, e não a flexibilização e a realização de manifestações, deveria estar sendo considerado. É certo que micro e pequenas empresas, trabalhadores informais e desempregados estão em dificuldade econômicas. Que muitos estão exaustos com a quarentena. Que metade da população gostaria de ir para a rua gritar “Fora Bolsonaro”.

Mas, afinal, não é a vida que deve ser colocada em primeiro lugar? Se não for isso, se a economia e os atos políticos devem ser priorizados, em uma naturalização de dezenas de milhares de mortes, então Bolsonaro tinha razão.

*Nabil Bonduki, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, foi relator do Plano Diretor e Secretário de Cultura de São Paulo.

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