As transições presidenciais nunca são fáceis, especialmente quando envolvem um presidente em exercício derrotado nas urnas. Mas desta vez a transição ocorre em meio a uma crise sem precedentes. O titular se recusa a reconhecer o voto como uma rejeição de suas políticas e tem uma aversão visceral pelo presidente eleito, a quem acusa de desonestidade e qualifica como fraco demais para assumir as funções do cargo. Ele considera seu sucessor um socialista, um defensor de políticas que colocarão o país no caminho da ruína.
O ano era 1932, e a transição de Herbert Hoover para Franklin D. Roosevelt ocorreu em meio a uma depressão econômica e uma crise bancária sem paralelos. O presidente que saía, Hoover, tinha enorme aversão a seu sucessor, cuja incapacidade de se preocupar não era devida a alguma falta de acuidade mental, mas sim à paralisia parcial de Roosevelt. Ele chamou FDR de “camaleão xadrez” e acusou-o de negociar “com cartas marcadas”. Em sua campanha e subsequentemente Hoover insinuou que as tendências socialistas de FDR colocariam o país em uma “marcha para Moscou”.
Naquela época, o interregno durou quatro meses, durante os quais o pato manco[1] e o Congresso fizeram muito pouco ou quase nada para resolver a crise em andamento. Corridas aos bancos e pânico se espalhavam de forma viral, forçando os governadores, um após outro, a fecharem seus sistemas bancários. Mas Hoover se recusou a declarar feriado bancário unilateralmente. Quando FDR tomou posse em março de 1933, o sistema bancário e toda a economia estavam praticamente parados.
[1] Pato manco (lame duck), é uma expressão usada principalmente na política norte-americana que define o político que continua no cargo, mas por algum motivo não pode disputar a reeleição e perde a expectativa de poder.
Hoover tinha conhecimento da crise. Mas se opôs ideologicamente à intervenção do governo federal. E estava absolutamente convencido de seus pontos de vista.
Podemos agora esperar um comportamento semelhante do presidente pato manco dos Estados Unidos, Donald Trump. Por ideologia e ressentimento, ele parece se recusar a provavelmente fazer qualquer coisa sobre o coronavírus que continua aumentando. A questão é até onde ele irá para impedir os esforços do presidente eleito Joe Biden para resolver o problema ao assumir o cargo. Trump proibirá os membros da força-tarefa de Biden contra o coronavírus e outros nomeados de instruir a equipe de transição? Ele reterá informações sobre a Operação Warp Speed, o esforço público-privado para produzir uma vacina COVID-19?
Hoover, não vendo necessidade de novas políticas, fez tudo ao seu alcance para limitar as opções do novo presidente. Acreditando na inviolabilidade do padrão ouro, ele pediu a FDR que emitisse uma declaração apoiando sua manutenção como forma de aumentar a confiança. Encorajou o presidente eleito a endossar, e até recomendar membros da delegação dos EUA nomeados por Hoover para a conferência internacional que tinha sido agendada para discutir as dívidas europeias de guerra e a restauração mundial do padrão ouro.
FDR reconheceu o perigo de dar um tiro no próprio pé e se recusou a se comprometer antes de assumir o cargo. Quando o presidente eleito o rejeitou, Hoover raivosamente distribuiu raiva cópias de suas comunicações, inflamando a opinião pública .
Da mesma forma, podemos esperar que Biden rejeite os apelos de Trump – se houver algum – e evite compromissos que limitem sua margem de manobra política. Mas Trump já o amarrou de outras maneiras. Em especial, os nomeados judiciais de Trump desafiarão os esforços do novo presidente para fazer política por meio de ordens executivas e diretivas regulatórias. Enquanto isso, os esforços para fazer avançar a legislação e confirmar os nomeados para cargos administrativos provavelmente serão frustrados pelo líder da maioria no Senado, Mitch McConnell, assumindo que não virão mais surpresas eleitorais da Geórgia (um estado que Biden parece ter vencido, onde as eleições de segundo turno para duas cadeiras no Senado serão realizadas em janeiro).
A transição de Hoover para Roosevelt ocorreu em um momento perigoso. Mobilizações políticas espontâneas de toda sorte estavam em ascensão. Um Exército do Bônus de mais de 43.000 veteranos da Primeira Guerra Mundial e suas famílias chegaram a Washington, DC, em meados de 1932, exigindo o pagamento dos certificados de serviço para seus veteranos. Eles foram violentamente dispersos, com mortes causadas pela polícia de Washington e pelo Exército dos EUA sob o comando do general Douglas MacArthur. Esse episódio desempenhou um papel importante na derrota eleitoral de Hoover (resultado que poderia ter servido de alerta para Trump, que da mesma forma chamou tropas para dispersar os manifestantes).
Além disso, houve protestos, alguns violentos, contra leilões de execução de hipotecas que aconteciam nas escadarias de tribunais de todo o país. Havia um crescente apoio popular a políticos extremistas, como Huey Long, da Louisiana. Dificuldades, desemprego e desalento econômico formaram o pano de fundo contra o qual Giuseppe Zangara, um pedreiro desempregado com problemas físicos e mentais e visões antissistema extremas, tentou assassinar Roosevelt 17 dias antes da posse.
Aqui temos duas lições. O presidente eleito e aqueles ao seu redor precisam tomar precauções extras para sua segurança pessoal, dado o inflamado clima político e os esforços contínuos de Trump para atiçar o fogo. E Biden agora, tal como FDR na época, deve reiterar sua mensagem de esperança e unidade como um antídoto para o coronavírus e a divisão política. Em 1933, foi o “medo propriamente dito” que os americanos tiveram de superar. Hoje, quando é o medo uns dos outros que os americanos devem superar, a declaração de Biden de que “não existem estados vermelhos ou azuis, mas simplesmente os Estados Unidos” é um bom começo.
*Barry Eichengreen é Professor de Economia na Universidade da Califórnia, Berkeley. É autor do livro: The Populist Temptation: Economic Grievance and Political Reaction in the Modern Era. (A Tentação Populista: O Ressentimento Econômico e a Era Moderna)