Em 1859, o americano Edwin Drake (1819-1880) perfurava o primeiro poço de petróleo nos Estados Unidos, iniciando o que seria uma corrida alucinante em busca do “ouro negro”. O estado da primeira exploração em solo americano foi a Pensilvânia. Emblemático ter sido o mesmo estado o pêndulo a favor da eleição presidencial do candidato democrata Joe Biden, que prometeu não poupar esforços para acelerar a transição energética nos Estados Unidos, algo que é visto com certo receio pela multibilionária indústria do petróleo. Biden planeja investir nada menos que 2 trilhões de dólares para combater às mudanças climáticas. Quer, com isso, reformar o setor energético americano e desenvolver fontes de energia livres de carbono em até 15 anos. “Transformar o setor elétrico americano para produzir energia sem poluir com carbono será o maior estímulo de criação de emprego e competitividade econômica do século XXI”, disse ele, em discurso na cidade de Wilmington, em julho. “Vamos desenvolver um setor elétrico livre de poluição em 2035.” Nas últimas semanas, China, Japão e Coreia do Sul também se comprometeram com a mudança. A União Europeia também possui plano de avanço energético e ambiental agressivo anunciado desde o ano passado.
A linha de Biden se contrapõe à atuação do presidente derrotado na disputa à Casa Branca, Donald Trump, que chegou a negociar pessoalmente um acordo com membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo e aliados (Opep+) em abril para proteger os interesses do setor de óleo e gás de xisto americano. Na ocasião, a indústria vivia um colapso devido à falta de demanda do combustível durante os meses mais delicados da pandemia do novo coronavírus. Na hora mais escura, houve produtor que pagasse para se livrar de barris de petróleo no país. “Trump é um defensor do negacionismo. Agora, com o Biden, haverá uma mudança de pensamento, que deve afetar, inclusive, o Brasil”, diz Adriano Pires, sócio-fundador do Centro Brasileiro de Infra Estrutura (CBIE). “As teses ambientais defendidas pelo governo Bolsonaro se contrapõem o que pensa o futuro presidente americano.”
Os impactos da agenda de Biden devem refletir mundo afora. Sua primeira tarefa será, certamente, reconduzir o país ao Acordo de Paris, rechaçado por Trump. Mas o maior desafio será em relação à transição energética. Muitos acreditam ser algo improvável num curto prazo, mas há quem desconfie disso. Segundo o banco Goldman Sachs, os gastos em energia renovável superarão a projeção de investimento no setor de óleo e gás já em 2021. Em suas contas, as renováveis podem atrair investimentos da ordem de 16 trilhões de dólares até 2030 e aplicar de 1 trilhão a 2 trilhões de dólares ao ano em recursos para infraestrutura.
Durante a corrida eleitoral, Trump tentou convencer os eleitores do chamado “cinturão de ferro” — região industrial formada por Michigan, Pensilvânia e Wisconsin — a não votarem no democrata. Para isso, a narrativa do republicano foi que Biden lançou uma “cruzada de extrema-esquerda contra a energia americana”, empurrando uma plataforma que “demolirá a economia americana” e causará muito desemprego. Apesar de ter sucumbido nos três estados, a “preocupação” de Trump pode se justificar em números. Hoje, o mercado petrolífero representa cerca de 4% do PIB mundial, sendo responsável por movimentar 86 trilhões de dólares e empregar 4 milhões de pessoas. Muito disso vem dos EUA, principal produtor de óleo com 19,5 milhões de barris por dia, muito acima da Arábia Saudita, com cerca de 11,8 milhões de barris por dia. “Assim como ‘jogo é jogo e treino é treino’, campanha é campanha e governo é governo. Por mais que Biden defenda a bandeira da descarbonização, essas transições energéticas costumam ser mais lentas do que as pessoas imaginam e a indústria de xisto é uma grande propulsora do PIB americano”, diz Pires.
Se cedo ou tarde, o fato é que a transição acontecerá e já está em curso. Para o engenheiro David Zylbersztajn, ex-diretor geral da Agência Nacional de Petróleo, a ANP, Biden deve acelerar exponencialmente a adoção de energias renováveis nos Estados Unidos e propor que o Brasil faça o mesmo. “A eleição de Biden sinaliza uma perda de força do petróleo”, diz. “O Brasil tem tudo para se adaptar a esse novo momento. Há, por aqui, abundância eólica e de energias renováveis. O país precisa se preparar para fazer essa transição, porque o petróleo vai ter cada vez menos demanda no mundo”. A eleição do democrata, no entanto, pode colocar em risco o futuro da Petrobras. “Com Biden, dificilmente voltaremos a ver o petróleo alcançar o preço por barril que tínhamos antes. Isso pode ser um problema sério para a Petrobras”, reitera.
Diante dos efeitos da Covid-19 para a indústria, a Petrobras tem adotado uma estratégia de desinvestimentos agressiva. O plano da petrolífera é priorizar barris de pré-sal de baixo custo e liquidar as dívidas. Segundo a companhia de pesquisas Rystad Energy Ucube, o custo para exploração do pré-sal recuou 61% de 2014 até 2019, de 15,3 dólares por barril para 6 dólares. É importante destacar que a estatal brasileira consegue extrair a um custo ainda inferior, cerca de 5 dólares. Para Decio Oddone, diretor-presidente da petroleira Enauta, isso pode ser um trunfo no curto prazo. “Na Europa, as empresas já estão se posicionando em busca da transição energética. Agora, isso vai acontecer também nos EUA. Acredito que isso vai abrir espaço para que o Brasil cresça sua produção de energia renovável, mas também a própria extração de petróleo”, diz ele, que comandou a ANP entre 2016 e março deste ano. “O petróleo, sobretudo o derivado dos grandes campos de pré-sal, ainda será necessário para o desenvolvimento econômico nas próximas décadas.”
De acordo com o ex-ministro da Fazenda Joaquim Levy, atual diretor de estratégia econômica e relações com os mercados do Banco Safra, uma das apostas do governo de Biden será o hidrogênio verde. Ele analisa que os impactos da transformação energética em solo americano terá bons frutos no Brasil. “O apoio da administração americana à transição energética deve estar voltada à criação de emprego, aproveitando a instalação de painéis solares, construção de torres eólicas, redes de transmissão inteligentes e até mesmo hidrogênio verde”, disse a VEJA. “Esses avanços nos EUA podem ajudar o Brasil. Quanto maior for o mercado de energias renováveis, mais poderemos atrair investimentos e transformar nossa economia com uma transição ordenada.” Acompanhar esse movimento do mercado americano pode ser crucial para que o Brasil volte ao mapa dos principais investidores globais.
Fonte: Veja