Durante uma reunião controversa sobre as propostas de regulamentação climática no fim do ano passado, um diplomata saudita da obscura, mas poderosa, Organização Marítima Internacional (OMI) abriu seu microfone para fazer uma reclamação furiosa: um de seus colegas estava revelando os procedimentos no Twitter conforme iam se desenrolando.
Foi uma quebra do sigilo no coração da OMI, agência das Nações Unidas às margens do Tâmisa que regula o transporte marítimo internacional e é encarregada de reduzir as emissões de um setor que usa um petróleo tão espesso que poderia ser transformado em asfalto. O transporte marítimo produz tanto dióxido de carbono quanto todas as usinas de carvão dos EUA juntas.
Documentos internos, gravações e dezenas de entrevistas revelam o que há anos vem se passando a portas fechadas: a organização tem repetidamente atrasado e abrandado as regulamentações climáticas, mesmo com o aumento das emissões do transporte comercial, tendência que ameaça minar as metas do acordo climático de Paris de 2016.
Uma das razões para a falta de progresso é que a OMI é um órgão regulador gerido em conjunto com a indústria que regula. Construtores de navios, companhias petrolíferas, mineradoras, fabricantes de produtos químicos e outros com enormes participações financeiras no transporte comercial estão entre os delegados nomeados por muitas nações-membros. Às vezes, chegam até a falar em nome de algum governo, sabendo que os registros públicos são poucos, e que mesmo quando a organização permite jornalistas em suas reuniões, normalmente os proíbe de citar seus integrantes pelo nome.
Um advogado da agência, Frederick J. Kenney, ressaltou esse ponto no ano passado ao abordar a queixa saudita. “Essa é uma reunião privada”, alertou.
A organização vai aprovar suas primeiras regras relativas às emissões de gases de efeito estufa desde Paris – regulamentos que não reduzem as emissões, não têm mecanismo de aplicação e deixam detalhes importantes envoltos em sigilo. Nenhuma proposta adicional está sendo analisada no processo de criação dessas regras, significando que provavelmente só serão consideradas daqui a cinco anos ou mais.
Os registros mostram que o motivo é que alguns dos mesmos países que assinaram os acordos de Paris vêm repetidamente minimizando os esforços para controlar as emissões do setor de transporte – com representantes da indústria em sua cola a cada passo. As transportadoras se alinharam a nações em desenvolvimento, como o Brasil e a Índia, contra a definição de limites de emissões. A China, lar de quatro dos cinco portos mais movimentados do mundo, argumentou durante anos que era muito cedo para fazer mudanças ou mesmo estabelecer metas.
Muitas vezes, o que os políticos declaram publicamente não corresponde à sua postura a portas fechadas. Em 2019, por exemplo, quando o presidente do Chile, Sebastián Piñera, pediu aos líderes mundiais que assumissem “compromissos climáticos mais ambiciosos”, seus diplomatas em Londres trabalharam para derrotar os limites de velocidade no transporte marítimo, medida que teria reduzido as emissões de carbono.
Há muita coisa em jogo. O transporte marítimo, ao contrário de outras indústrias, não é facilmente regulamentado entre nações. Um petroleiro japonês, por exemplo, pode pertencer a uma empresa grega e ser comandado por uma tripulação indiana no trajeto da China para a Austrália – tudo sob a bandeira do Panamá. É por isso que, quando os líderes mundiais omitiram o transporte internacional do Acordo de Paris, a responsabilidade recaiu sobre a OMI, que padroniza as regras desde 1948.
Portanto, se a agência não reduzir as emissões do transporte, não se sabe quem o fará. E, por enquanto, ela não está tentando mudar. “Eles se esforçaram para impedir, abrandar ou desencorajar uma conversa real”, garantiu Albon Ishoda, diplomata das Ilhas Marshall.
Essa pequena nação-arquipélago do Pacífico está entre as que se beneficiaram e perpetuaram o domínio da indústria sobre a agência. O país chegou até mesmo a vender seu assento diplomático em Londres para uma empresa privada americana décadas atrás. Mas o aquecimento global mudou as coisas. Os mares estão subindo. As casas estão sendo levadas. Grande parte da nação pode se tornar inabitável na próxima década.
Agora, as Ilhas Marshall estão apresentando um plano ambiental ambicioso, um imposto sobre o carbono que penalizaria os poluidores. É um tiro na proa das forças industriais e políticas da OMI. E os marshallinos tentam recuperar seu assento diplomático e falar por si mesmos. “Minha voz vem de meus antepassados, que viam o oceano como algo que nos trazia riqueza. Hoje o vemos como algo que vai trazer nosso fim”, disse Kitlang Kabua, o ministro marshallino que lidera o esforço.
Abrandado desde o início
Os marshallinos são obstáculos improváveis da organização marítima.
Em 1990, o primeiro presidente do país assinou um acordo com uma empresa, a International Registries Inc., para criar uma maneira amigável e de baixo custo para os navios navegarem sob a bandeira das Ilhas Marshall.
A empresa, com sede na Virgínia, fez todo o trabalho e, no papel, as Ilhas Marshall se tornaram o lar de uma das maiores frotas do mundo. O governo se beneficiou da receita – cerca de US$ 8 milhões por ano recentemente, segundo uma autoridade.
No entanto, as coisas se complicaram quando o ministro das Relações Exteriores, Tony de Brum, participou de uma reunião da OMI em 2015. As histórias de sua terra natal em via de extinção tinham dado urgência às negociações de Paris e ele esperava uma recepção semelhante em Londres.
Ele e sua equipe não tinham ideia de onde estavam se metendo. Ishoda contou que, ao chegar em traje de negócios à ilha – camisa florida, calça e paletó de terno –, a segurança o mandou de volta ao hotel para pôr uma gravata.
“A OMI é efetivamente uma reunião a portas fechadas de velhos marinheiros. É surpreendente que fumar ainda não seja permitido”, comentou Thom Woodroofe, analista que acompanhou de Brum a Londres.
De Brum também quase teve seu assento negado. A International Registries, que representava as Ilhas Marshall na OMI, inicialmente se recusou a cedê-lo ao ministro das Relações Exteriores, recordou-se Woodroofe.
Nas reuniões climáticas da ONU, os países são tipicamente representados por políticos seniores e delegações de autoridades do governo. No comitê ambiental da organização marítima, no entanto, um em cada quatro delegados vem da indústria, de acordo com análises separadas do “The New York Times” e do grupo sem fins lucrativos Influence Map.
Autoridades da indústria e da organização marítima afirmam que tais acordos dão voz aos especialistas. “Se não envolvermos os responsáveis, o resultado vai ser ruim”, declarou Guy Platten, secretário-geral da Câmara Internacional de Transportes Marítimos.
De Brum tentou convencer diplomatas e autoridades do setor a estabelecer metas ambiciosas de emissões nos oito meses seguintes. “O tempo é curto, e não é nosso amigo”, disse ele aos delegados em 2015, de acordo com notas da reunião.
Contudo, o secretário-geral da OMI na época, Koji Sekimizu, do Japão, opôs-se abertamente à regulamentação rigorosa das emissões, vista como um entrave ao crescimento econômico. E um bloco informal de países e grupos industriais ajudou a arrastar o processo de definição de metas por três anos.
Assim, quando os delegados finalmente estabeleceram as metas em 2018, a pretensão de de Brum acabou sendo reduzida.
Restaram apenas dois objetivos fundamentais: primeiro, a indústria tentaria melhorar a eficiência do combustível em pelo menos 40 por cento. Isso era basicamente um engodo. A meta era tão baixa que, por alguns cálculos, seria alcançada quase no mesmo momento em que foi anunciada.
Em segundo lugar, a agência pretendia reduzir as emissões pela metade até 2050. Mas mesmo esse objetivo insignificante está se provando inalcançável. Os próprios dados da agência apontam que as emissões podem crescer 30 por cento.
Comprometimentos
Quando os delegados se reuniram em outubro do ano passado – cinco anos depois do discurso de de Brum –, a organização não havia adotado nenhuma medida. Propostas como os limites de velocidade foram debatidas e rejeitadas.
O que restou foi o que vários delegados chamaram de “classificação de geladeira” – pontuação que, como as desses aparelhos nos EUA, identificava os navios limpos e sujos.
Os delegados europeus insistiram que, para o sistema funcionar, os navios com baixa pontuação devem ser proibidos de navegar. A China e seus aliados não queriam esse tipo de consequência.
Os registros mostram que, por fim, a França cedeu a quase todos os pedidos da China. As embarcações mais sujas não seriam aposentadas. Os armadores apresentariam planos dizendo quais seriam as melhorias “pretendidas”, e não seriam de fato obrigados a agir.
Tudo isso foi feito em segredo. Além disso, o regulamento inclui outra ressalva: a OMI não publicará as pontuações das embarcações, permitindo que as companhias marítimas decidam se divulgam quão sujos são seus navios.
A tempestade no horizonte
Independentemente do resultado, os ventos políticos estão mudando. A União Europeia está tentando incluir o transporte em seu sistema de emissões do comércio. Os Estados Unidos, depois de anos como atores menores na agência, buscam um reengajamento sob o governo de Joe Biden e recentemente sugeriram a possibilidade de eles mesmos combaterem as emissões do transporte. Esses seriam grandes golpes para a OMI, que há muito insiste que regula sozinha o transporte marítimo.
De repente, funcionários da indústria dizem que estão ansiosos para considerar coisas como impostos sobre combustíveis ou carbono.
Recentemente, os delegados se reuniram em segredo para debater qual deveria ser a nota de aprovação do novo sistema de classificação. Sob pressão da China, do Brasil e de outros países, os delegados estabeleceram uma tão baixa que as emissões podem continuar a subir – no mesmo ritmo de uma ausência de regulamentação. Os delegados concordaram em revisar a questão em cinco anos.
Fonte: Exame