Textos de Renée Pereira – O Estado de São Paulo
Juro baixo acelera diversificação e impulsiona novos negócios
Queda na Selic aumenta procura por novos fundos e por serviço personalizado de consultoria; escritórios de advocacia, gestoras e bancos contratam profissionais para dar conta do trabalho
A taxa de juros no menor patamar da história tem criado um ciclo virtuoso no mundo dos negócios. Com a queda da Selic, hoje em 4,25% ao ano, investimentos tradicionais deixaram de ser atraentes e provocaram uma corrida dos brasileiros pela diversificação de suas carteiras. Esse movimento exigiu a estruturação de novos produtos, atraiu profissionais diferenciados e abriu espaço para a criação de gestoras e consultorias de investimentos personalizados. A demanda por ativos mais arriscados também fez, enfim, o mercado de capitais decolar e virar uma alternativa de financiamento para as empresas.
Para alguns economistas, essa roda movida pelos juros baixos representa uma grande transformação na dinâmica da economia brasileira. Está havendo uma mudança radical no comportamento de investidores, gestores e empresas, diz o economista Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda. Na prática, essa onda pode ser verificada na migração do dinheiro dos brasileiros de aplicações de renda fixa para a renda variável (ações), na forte demanda pelos fundos de investimentos e no aumento de ofertas de ações na Bolsa (IPO, na sigla em inglês).
BRASIL CRIA EM MÉDIA 6 FUNDOS DE INVESTIMENTOS POR DIA
Nos últimos 12 meses, mercado lançou 2.208 novos produtos para atender busca por diversificação das carteiras
A corrida pela diversificação de investimento, desencadeada pela queda da taxa de juros, teve reflexo imediato na indústria de fundos. Nos últimos 12 meses, os fundos receberam mais de R$ 800 bilhões – o dobro do verificado em 2018. O movimento veio acompanhado da criação de novos produtos para atender a uma demanda que não para de crescer.
De janeiro do ano passado para cá, o mercado criou 2.208 novos fundos de investimento – o que significa, em média, seis produtos por dia. Em 2018, foram 3,5 por dia, segundo dados da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima).
“Na medida em que os juros foram caindo, as pessoas foram em busca de ativos com maior potencial de retorno”, explica o vice-presidente da Anbima, José Eduardo Laloni. Nessa migração, os fundos foram um refúgio para muitos investidores, que ainda estão num processo de aprendizagem sobre como assumir mais riscos para aumentar a rentabilidade de seu patrimônio.
A mudança colocou o mercado brasileiro entre os oito maiores do mundo, diz Laloni. Hoje, o estoque de dinheiro aplicado na indústria de fundos soma R$ 5,5 trilhões e tem grande potencial para continuar em ascensão. Isso porque ainda tem muito dinheiro investido em aplicações conservadoras que precisarão passar por uma revisão.
Além disso, entre os fundos de investimentos, as migrações vão continuar aceleradas, diz Marcos Colombo, sócio responsável pela área de relacionamento com clientes e produtos da gestora Mauá Capital. Segundo ele, 85% dessa indústria está alocada em produtos de renda fixa com nível de volatilidade baixa.
“O grosso do investimento ainda está em produtos de baixo risco. Com o passar do tempo e maior entendimento das pessoas sobre a remuneração do capital, essa migração tende a se intensificar”, diz ele, que lançou cinco fundos no ano passado. Dois deles de crédito (que incluem títulos privados), dois quantitativos (que seguem modelos matemáticos) e um imobiliário.
De acordo com dados da Anbima, os fundos que tiveram maior crescimento nos últimos 12 meses foram os multimercados, de ações e imobiliários. Mas, embora seja a estrela do momento, os fundos do mercado de imóveis ainda representam uma parcela pequena do total. A tendência para os próximos meses, no entanto, é ter um crescimento exponencial, sobretudo com novas versões do produto.
“Esse cenário, desafiador, está nos dando oportunidade de nos reinventarmos. Temos de oferecer produtos com retornos diferenciados aos nossos clientes todos os dias”, diz a chefe de investimentos do banco Santander, Luciane Effting. Nos últimos meses, a instituição lançou 17 fundos no mercado para atender à demanda. Para este ano, novos produtos estão sendo montados, como fundos imobiliários, de ações e de infraestrutura.
A RB Asset também tem incrementado seu portfólio. No ano passado, a RB Asset lançou dois fundos de investimentos. Neste ano, em menos de dois meses, já criou três novas carteiras. “Precisamos ter o mix de produtos que os outros têm. Hoje temos dez fundos imobiliários”, diz sócio da empresa, Adalbero Cavalcanti.
Uma das apostas do mercado neste ano é a demanda por carteiras voltadas para projetos de infraestrutura, que exigirão elevados volumes de recursos nos próximos anos. “Com toda agenda do governo na área de infraestrutura, com privatizações e concessões, é natural que as empresas precisem de funding para desenvolver os projetos”, afirma Alexei Bonamim, sócio da área de mercado de capitais do escritório Tozzini Freire Advogados. Para ele, essa captação poderá ser feita por meio de fundos de investimentos.
O estrategista do UBS Wealth Management, Ronaldo Patah, diz que, além dos fundos de infraestrutura, uma próxima onda deve ser a criação de fundos de ativos internacionais – ou seja, carteiras que aplicam no exterior. “Sem dúvida, esse momento que exige mais trabalho do gestor, com investimentos mais complexos e sofisticados”, destaca ele, cujo banco trabalha apenas com fundos fechados.Vivemos um mundo que é o avesso do que tivemos até agora. O que antes tinha apelo, como a renda fixa, perdeu o ‘appeal’. Agora, querem outras alternativas”Ronaldo Patah, estrategista do UBS Wealth Management
“Vivemos um mundo que é o avesso do que tivemos até agora. O que antes tinha apelo, como a renda fixa, perdeu o ‘appeal’. Agora, querem outras alternativas”, diz Patah. Segundo ele, esse universo tem exigido um aprendizado por parte dos gestores e dos investidores em torno de novas formas de aplicação.
Além de incentivar o lançamento de novos produtos, a busca dos investidores por maior diversificação também tem provocado algumas mudanças significativas no mercado. Ao contrário do que ocorria no passado, hoje grande bancos negociam fundos de outras gestoras em plataformas voltadas para investimentos. Tudo isso para não perder clientes.
É o caso do Santander, que lançou no ano passado uma plataforma de investimentos. Segundo Luciane Effting, além do número de fundos ter aumentado, a instituição também começou a oferecer produtos de terceiros aos investidores. Após passar por um processo de due diligence (investigação sobre os riscos e oportunidades do negócio), uma equipe do banco escolhe fundos que possam fazer sentido para os clientes.
CRESCE O NÚMERO DE ASSESSORIAS DE INVESTIMENTOS
Vários profissionais que atuaram em bancos e grandes gestoras aproveitam momento para criar suas próprias empresas de consultoria e investimentos
De olho em brasileiros que precisam rever as aplicações com a queda dos juros, centenas de profissionais, que antes estavam em grandes bancos, estão abrindo consultorias próprias de investimentos para abocanhar esse nicho de mercado. Segundo dados da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), compilados pelo Estado, só no ano passado o número de pedidos para assessoria financeira cresceu 40%, depois de já ter avançado 26% em 2018. No total, foram 4.852 pedidos em 2019, autorizados pelo órgão regulador. Neste ano, já foram 694.
“Entendemos que, com a taxa de juros em queda, o investidor teria de se debruçar sobre sua carteira para reavaliar os ativos. Isso favoreceu a decisão de abrir minha empresa”, diz Luzimar Abreu, sócia-fundadora da ALL Investimentos. Ela trabalhou durante 27 anos no mercado financeiro, sendo oito deles cuidando das operações do segmento de alta renda de um grande banco.
Com a virada do mercado, ela pediu demissão e, ao lado de mais uma sócia, abriu seu escritório em dezembro de 2018. “Nesse um ano de operação, não paramos um minuto. Em toda minha carreira nunca vi uma abertura tão grande do investidor querendo nos ouvir”, diz Luzimar. A demanda tem sido tão grande que a cada mês três novos profissionais são incorporados à empresa. Segundo ela, o plano estratégico previsto para um ano foi alcançado em seis meses. “Começamos com sete assessores e hoje temos 36.”
De fato, a mudança no mercado de investimento foi muito rápida. Apesar de o ciclo de queda da taxa Selic ter iniciado em 2016, só no ano passado o brasileiro sentiu na pele o efeito dos juros baixos nas suas aplicações. Até então, bastava comprar um título público ou colocar o dinheiro num fundo de renda fixa para ter um bom retorno. “Agora eles buscam alternativas para se aproximar da rentabilidade do passado”, diz Reinaldo Lacerda, sócio da Hieron.
Ao lado do sócio Robert Van Dijk, ele abriu a gestora em junho do ano passado, voltada especialmente para a gestão de grandes fortunas e criação de produtos estruturados. Com 35 anos no mercado financeiro, os dois são egressos do Banco Votorantim e precursores em fundo de investimento imobiliário e em fundos de participação em infraestrutura.
“Entendemos que tinha chegado a hora de criar nossa própria empresa nesse momento de grandes transformações.” Em oito meses de atividade, a empresa já tem R$ 1,7 bilhão sob gestão. No momento, eles estão preparando o lançamento de dois produtos estruturados no mercado: um fundo imobiliário e um fundo de participação.
Lacerda destaca que no passado havia poucas empresas especializadas em renda variável e muitas em renda fixa. Com os juros em 4,25% ao ano, esse mix tende a mudar. Os juros baixos promovem o crescimento das assets (gestoras) especializadas, de gestores patrimoniais e de advisors (conselheiros) financeiros. “Isso porque o investidor passa a ter a necessidade de suporte para diversificar sua carteira.”
Com essa visão, a RB Capital lançou há cerca de um ano sua plataforma de investimentos, onde negocia mais de 150 fundos do mercado. “Durante 20 anos, sempre produzimos ativos que eram negociados por terceiros. Decidimos tirar esse intermediário e criamos a RB Investimentos”, diz o sócio da empresa, Adalbero Cavalcanti.
Segundo ele, a plataforma nasceu com mais de R$ 1 bilhão de recursos de investidores e já bateu R$ 2 bilhões. A meta é dobrar esse valor neste ano. “O crescimento está ocorrendo mais rápido do que esperávamos.”
Ele lembra que, quando os juros estavam em 14% ao ano, todo mundo estava feliz com as LCAs (letras de crédito do agronegócio) e LCIs (letras de crédito imobiliário). Agora, diz, esse cenário mudou muito e ativos que estavam adormecidos voltaram com tudo. “De 2013 a 2018, a Bolsa ganhou 200 mil novos investidores. De 2018 para cá, foram mais de 600 mil.” Hoje, a B3 tem 1,6 milhão de CPFs com alguma ação custodiada na Bolsa. “E isso ainda é um número irrisório”, diz o vice-presidente da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima), José Eduardo Laloni.
DEMANDA DE INVESTIDOR ABRE VAGAS DE EMPREGO
Bancos, gestoras e escritórios de advocacia disputam profissionais no mercado para área de investimentos e mercado de capitais
Para dar conta de uma demanda cada vez mais crescente, bancos, gestoras e escritórios de advocacia estão tendo de rever suas estruturas e reforçar as equipes. O banco Santander, por exemplo, criou no ano passado o que vem sendo chamado de “Quarteirão do Investimento”, no centro da cidade de São Paulo. Ao lado do Farol Santander, um imóvel foi reformado e agora abriga a área de investimentos do banco.
“O departamento de assessoria de investimentos passou por uma reestruturação para atender ao momento atual e dar um atendimento exclusivo aos clientes”, diz a chefe de investimentos da gestora da instituição, Luciana Effting. Segundo ela, a área, que antes tinha 50 pessoas, hoje conta com mais 300 profissionais, especializados e com certificação.Esse cenário, desafiador, está nos dando oportunidade de nos reinventarmos. Temos de oferecer produtos com retornos diferenciados aos nossos clientes todos os dias”Luciane Effting, chefe de investimentos do banco Santander
A executiva explica que, com as oportunidades, o cenário de juros baixos trouxe uma carga grande de trabalho. “Para oferecer produtos de outras instituições, por exemplo, temos de ter profissionais que façam a due diligence de todos os produtos e gestores. Além disso, com a maior procura de fundos imobiliários e de infraestrutura, tivemos de contratar gestores com know how nesses segmentos.”
Na RB Capital, a nova área de investimentos que começou com uma pessoa agora conta com 45 profissionais. “E devemos fazer novas contratações nos próximos meses, pois estamos crescendo bastante”, diz o sócio da empresa Adalbero Cavalcanti.
O mesmo vem ocorrendo nos escritórios de advocacia, que acabam sendo a outra ponta impulsionada pela demanda dos investidores. Os advogados estão em quase todas as fases de um fundo de investimento. Eles ajudam na criação, na capitalização e nas aplicações que os gestores vão fazer com o dinheiro investido na carteira.
“Estamos com um número de operações que não se via há, pelo menos, uma década”, diz Fernando Zorzo, sócio de mercado de capitais do Pinheiro Neto Advogados, referindo-se à oferta de ações neste ano – atualmente o escritório tem 20 operações em curso.
Nos últimos seis meses, Zorzo conta que a área teve de contratar cinco advogados e oito estagiários para dar conta da quantidade de trabalho.
O desafio tem sido manter a equipe estruturada, pois a concorrência está forte. “Temos conseguido reter nossos funcionários, mas a rotatividade no mercado está alta.”
O sócio da área de mercado de capitais da TozziniFreire Advogados, Alexei Bonamin, já percebeu a maior disputa por profissionais no mercado. O escritório está com processo de seleção para dois novos profissionais para o segmento. “Quando você escolhe um candidato, que precisa ser bem especializado, ele já recebeu outra proposta.”
Enquanto isso, a demanda só cresce. De dezembro para cá, diz ele, a busca pelos serviços no escritório aumentou sensivelmente. “A questão dos juros não é uma mudança do patamar conjuntural, é estrutural. Vai ser difícil ter a facilidade que se tinha no passado para ganhar dinheiro com aplicações.”
MERCADO DE CAPITAIS JÁ REPRESENTA 30% DO CRÉDITO DAS EMPRESAS
Emissão de títulos e ações vira principal alternativa de financiamento das companhias brasileiras
Outra frente que tem sido beneficiada pela queda da taxa de juros é o mercado de capitais. Segundo dados do Centro de Estudos de Mercado de Capitais da Fipe (Cemec-Fipe), as captações feitas no País já representam quase 30% do crédito das companhias brasileiras. Em 2016, esse porcentual era de 17,8%. “Vivemos uma experiência única. A queda acentuada dos juros está produzindo uma mudança radical nos investimenos e na forma de as empresas se financiarem”, diz o diretor do Cemec, Carlos Antonio Rocca.
No ano passado, as emissões domésticas cresceram 59,3% e somaram quase R$ 400 bilhões. Embora represente o maior volume de captações feitas pelas empresas, os ativos de renda fixa registraram queda na participação no ano passado, de 89,1%, em 2018, para 68,2%, segundo dados da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima). O resultado é decorrente do aumento do volume de ações lançadas em 2019. A fatia a renda variável no mercado subiu de 4,5% para 22,8% no período e a de fundos imobiliários, de 6,3% para 9%.
“O juro baixo abriu espaço para a renda variável e produtos diferenciados. Há pressão do investidor por fundos imobiliários e ações”, diz o sócio de mercado de capitais do Pinheiro Neto Advogados, Fernando Zorzo. Mas, segundo ele, embora os títulos de renda fixa, como debêntures, notas promissórias e certificados de recebíveis, estejam atrelados aos juros, as empresas estão emitindo papéis para alongar a dívida. Em 2019, só o lançamento de debêntures e notas promissórias somou R$ 209 bilhões, segundo a Anbima.