Elton John não dava sinais de que lançaria outro álbum com novas composições. Ele estava no meio de uma turnê colossal de despedida, tinha acabado de produzir um filme pomposo sobre sua trajetória e vinha se dedicando cada vez mais aos filhos, num movimento de quem está mais preocupado em se aposentar. Mas aí veio a pandemia, e tudo mudou.
Os longos meses de isolamento levaram a estrela britânica do rock para o piano, de onde, entre um dedilhar e outro, saíram canções inéditas. Elas se avolumaram e acabaram se encontrando no disco “The Lockdown Sessions” —algo como sessões do confinamento—, que ele lança na sexta-feira.
A capa do álbum traz um Elton John quase sóbrio, sem os figurinos espalhafatosos e os óculos de sol policromáticos. Mas a severidade dos tons de preto que ele veste é quebrada por uma máscara brilhante, na qual diferentes cores se alternam com estrelas e letras que formam um garrafal “Elton”.
É um lembrete de que as faixas ali são crias da pandemia —muitas foram gravadas pelo Zoom—, mas também de um artista que, aos 74 anos, ainda desfruta de uma torrente de produtividade e inventividade que poucos figurões da música conseguiram manter nessa fase da vida.
“Eu nunca, nunca pensei em fazer um álbum durante o confinamento, então tem sido uma alegria trabalhar em ‘The Lockdown Sessions’”, explicou Elton John num evento virtual para a imprensa, no mês passado. Com o rosto coberto por grandes óculos, de um vermelho berrante que combinava com as calças, o músico comentou o processo de criação do novo disco, sendo transmitido para vários cantos do mundo a partir de um estúdio de Londres.
Este não é um disco como os seus cerca de 80 anteriores —entre álbuns de estúdio, shows gravados ao vivo, compilados, especiais de fim de ano, trilhas sonoras de filmes e espetáculos musicais. Cada uma das faixas de “The Lockdown Sessions” foi gravada em parceria com outro músico e, ao contrário de um projeto semelhante lançado nos anos 1990, “Duets”, aqui o artista sai com muito mais frequência de sua zona de conforto.
Entre os colaboradores do novo álbum estão veteranos como ele —Stevie Nicks e Stevie Wonder—, novos nomes do pop —caso de Dua Lipa, Charlie Puth, Rina Sawayama, Miley Cyrus e da banda Years & Years— e figuras no meio do caminho —Gorillaz, Brandi Carlile, Eddie Vedder.
O que mais chama a atenção, no entanto, são as parcerias com Lil Nas X, Nicki Minaj e Young Thug, que trazem Elton John em meio a batidas de rap —ele diz que sua mente explodiu quando Young Thug chegou ao estúdio e começou a improvisar.
Várias das canções, é verdade, já estão disponíveis há algum tempo. Isso porque algumas das parcerias foram lançadas antes da ideia de compilar as novas faixas no álbum —ou pertencem originalmente a discos dos músicos com quem colaborou, como Lil Nas X, que lançou “One of Me” como parte de “Montero”, no mês passado, mas deixou que a canção aparecesse também em “The Lockdown Sessions”.
“Tudo começou quando eu me encontrei com o Charlie Puth, que mora a quatro portas da minha casa em Los Angeles, e ele me disse para visitar para que pudéssemos fazer música juntos. Foi o que fiz”, diz ele, mencionando a criação de “After All”, em que os vocais sintetizados de Elton John se misturam à voz delicada e elástica do vizinho, que estampa várias fotos e vídeos no Instagram do astro.
Depois disso, Elton John voltou à sua Inglaterra natal, onde diz que outros artistas o convidaram para colaborações. Foram tantos “sim” ditos que, quando se deu conta, ele tinha um álbum inteiro nas mãos, que veio de um lugar de “muita amizade, diversão e amor”.
A presença em peso de gente que ainda está construindo uma reputação na música é algo que animou o britânico, que diz que, apesar de já ter cantado com lendas como Bob Dylan, John Lennon, Aretha Franklin e Ray Charles, seu interesse agora está voltado para as novas gerações —sua parceira dos sonhos, hoje, seria com a nova queridinha do pop, Billie Eilish.
“Para mim é importante oferecer uma mão amiga para artistas mais novos, porque quando eu vim para os Estados Unidos pela primeira vez, os Beach Boys fizeram isso por mim”, lembra.
De sua estreia em solo americano, na icônica casa de shows californiana Troubadour, em 1970, até hoje, Elton John precisou se reinventar inúmeras vezes. O sucesso de faixas seminais feitas ao lado do letrista e fiel escudeiro Bernie Taupin, como “Your Song” e “Skyline Pigeon”, criou as bases para que ele se tornasse uma verdadeira lenda do rock e do pop.
As décadas seguintes trouxeram recordes de vendas, turnês bombásticas, figurinos que grudaram no imaginário popular, um título de sir, uma ONG respeitadíssima, amizades badaladas —de Lady Di a Lady Gaga— e muitas, muitas canções que viraram clássicos atemporais. Também vieram trabalhos no cinema e no teatro, nas trilhas sonoras de sucessos como “O Rei Leão” e “Billy Elliot”, e, na esteira, cinco troféus no Grammy, dois no Oscar e um Tony.
Mas a fama, ingrata, também o pôs sob escrutínio público, à mercê de críticas que iam de seu estilo de vida extravagante ao vício em álcool e drogas, passando por um casamento fracassado com uma mulher e por sua homossexualidade, um tabu que assombrou o cantor-compositor por anos.
Casado, desde 2005, com o produtor cinematográfico David Furnish, com quem tem dois filhos —Zachary e Elijah, de dez e oito anos—, Elton John deixou tudo isso para trás. E ele pareceu ter enfim se reconciliado com o passado turbulento quando lançou, há dois anos, a cinebiografia musical “Rocketman”, que produziu ao lado do marido.
Dirigido por Dexter Fletcher, o filme não poupou exageros e licenças poéticas para engrandecer e dramatizar a trajetória do biografado, mas ao mesmo tempo expôs com certa crueza as tragédias pessoais e as rejeições que moldaram o astro britânico.
Ao fim das várias sequências musicais que dão ares de espetáculo ao filme, o epílogo avisa, com certo orgulho, que Elton John largou seus vícios, se aceitou e está num casamento feliz. “Estou livre, você não sabia? Eu vou me amar novamente”, canta ele conforme os créditos sobem, na música “(I’m Gonna) Love Me Again”, que rendeu um Oscar a ele.
Hoje, a bandeira LGBTQIA+ parece indissociável de Elton John, um artista que, seja por meio de suas performances, da vida privada ou da ONG Elton John Aids Foundation, se tornou um ícone cultural dentro da luta pelos direitos dessa população. Ele reconhece esse papel, que se mostra bastante presente nas próprias faixas de “The Lockdown Sessions”.
“Eu gosto disso, não gosto daquilo/ Faça isso, não faça aquilo/ Diga que é um dos meus, diga que é um dos meus”, canta Lil Nas X acompanhado pelo piano de Elton John em “One of Me”. É como se, na canção, o novato compartilhasse das expectativas e pressões que já foram projetadas sobre o veterano, mas é impossível não expandir essa leitura também para o ativismo gay do qual o rapper agora assume a dianteira.
Na regravação de “It’s a Sin”, dos Pet Shop Boys, que Elton John fez na esteira da minissérie homônima da HBO, que retratou a epidemia de Aids no Reino Unido, os versos ganham novo significado. “Tudo o que eu já fiz/ Tudo o que vou fazer/ Todos os lugares onde estive/ Todos os lugares aos quais irei/ É um pecado”, canta ele ao lado da banda britânica Years & Years, com seu vocalista também gay, Olly Alexander.
“Há muitos talentos queer por aí hoje em dia. Veja o Lil Nas X, que está quebrando barreiras na comunidade negra e no hip-hop, que pode ser bem homofóbico às vezes. Muitas pessoas estão preocupadas com a diversidade agora”, diz Elton John, citando, entre os novos talentos LGTBQIA+ que admira, o australiano Troye Sivan e a americana St. Vincent. “Há muitos de nós por aí, mas não se preocupem, não vamos fazer mal nenhum a vocês. Se a música é boa, essa nem deveria ser uma questão.”
Chegar nesse lugar de ícone gay foi uma verdadeira revolução na vida de Reginald Kenneth Dwight, nome de batismo de sir Elton Hercules John. Nascido no fim da década de 1940 no pacato subúrbio de Pinner, na Grande Londres, o artista não poderia imaginar que um dia se tornaria essa figura quase folclórica, colorida, de performances exuberantes e figurinos glamorosos.
“Eu tive um começo bem lento. Era como o conto da lebre e a tartaruga, mas de repente a tartaruga ultrapassou a lebre e eu compensei o tempo perdido”, disse ele sobre aceitar sua homossexualidade à Variety, em 2019. “Eu fui muito privilegiado de estar num meio que aceita pessoas gays, mas há crianças que não têm esse privilégio. E eu acho que não teria tido a vida que tive se não fosse gay e tenho muito orgulho disso, eu aprecio isso.”
“The Lockdown Sessions” não deve inspirar uma nova turnê —primeiro, pela difícil logística de encarar um show apenas com músicas feitas em parceria, segundo porque Elton John vem arquitetando há anos sua despedida dos palcos. Lançada em setembro de 2018, a turnê “Farewell Yellow Brick Road” tem levado, desde então, os maiores sucessos do astro britânico a cidades da Europa, da América do Norte e da Oceania.
O nome escolhido para a turnê é um aceno ao mais famoso de seus álbuns, o “Goodbye Yellow Brick Road”, de 1973, morada de clássicos como “Candle in the Wind” e “Bennie and the Jets”. Interrompida em março do ano passado pela pandemia de Covid-19, ela pôs seu protagonista de volta na estrada em setembro. Há shows agendados até maio de 2023, no que promete ser uma longa e memorável despedida de Elton John de seu habitat natural.
Mesmo com o clima de desfecho que vem dando à carreira, no entanto, o artista diz que nunca esteve tão empolgado com a música quanto está hoje. Sobre as parcerias de “The Lockdown Sessions”, ele diz que aprendeu um pouco com cada um dos artistas novatos que viraram, também, amigos.
“Por causa dos meus anos de experiência, eu pude me adaptar aos estilos deles com facilidade. E aprendi algo com cada um deles, e você nunca pode parar de aprender se for músico. Se você se fecha, é o fim”, diz.
Nas próximas paradas de sua turnê derradeira, que vão de Los Angeles a Sydney, mas passam longe da América Latina, ele pretende manter um velho hábito —ir a lojas locais para vasculhar, entre as prateleiras, CDs e vinis de gente que ainda não conhece muito bem. “Não importa onde eu vá no mundo, eu sempre vou a uma loja de discos.”
Mas não há lugar como o nosso lar, Elton John vem frisando em entrevistas recentes, e no fim dessa “Yellow Brick Road”, a estrada de tijolos amarelos, ele planeja encontrar tempo para se dedicar mais à família —e, entre uma tarefa doméstica e outra, promete continuar compondo, mesmo que as novidades não inspirem os espetáculos fabulosos, coloridos e gigantescos do passado.
The Lockdown Sessions
- Quando Disponível nas plataformas digitais a partir de sexta (22)
- Gravadora EMI/Mercury Records
- Artista Elton John, Dua Lipa, Lil Nas X e outros
Fonte: Folha