Dizer que a agenda ESG (ambiental, social e de governança, na sigla em inglês) chegou ao setor público pode soar um tanto ingênuo. Preservar o meio ambiente, resolver problemas sociais e adotar uma conduta ética são atribuições fundamentais de países, estados e municípios.
No entanto, desde que a gestão pública passou a se inspirar no perfil empresarial, a política também pegou o vocabulário do mercado emprestado —e a sigla da vez não ficou de fora.
Estados brasileiros estão querendo entrar na onda ESG, mas com outra abordagem. Enquanto as companhias pretendem ser verdes, os governos se posicionam como incentivadores desses negócios.
Em São Paulo, a InvestSP, agência de estímulo a investimentos vinculada à secretaria de Fazenda e Planejamento, começou a estudar formas de trazer os princípios ambientais, sociais e de governança para dentro do governo estadual.
“A gente precisa fazer com que todas as políticas públicas, todos os incentivos fiscais e os recursos de pesquisa e desenvolvimento, sejam direcionados a projetos que tenham essa pauta ESG”, diz Gustavo Junqueira, presidente da InvestSP.
Segundo ele, a agência está elaborando um sistema de classificação (rating) com a ajuda do setor privado. A ideia é que benefícios fiscais e regimes especiais de tributação sejam priorizados para empresas e projetos com melhores notas ESG.
“Contratamos consultorias para nos ajudar a fazer essa avaliação, [sobre] o que é um projeto ESG, como comparar um com outro. Estamos em conversa com a B3 —que já tem o índice de sustentabilidade— para que a gente faça algo na mesma linha, e em conversas com a Febraban para que a matriz [de classificação] seja a mesma”, afirma.
Junqueira argumenta que conceder benefícios a partir de critérios sustentáveis estimula uma “competição verde” entre as empresas, criando um processo virtuoso.
Ele cita o exemplo da indústria automotiva, que hoje recebe incentivos por gerar muitos empregos e para ganhar competitividade em relação aos produtos importados. No modelo ESG seria diferente.
“A empresa automobilística teria acesso aos benefícios fiscais a depender do rating ESG. Se ela for um triple C [classificação ruim], vai ter um tanto de benefício. Se for triple A [classificação ótima], tem acesso a 100% dos benefícios. Então você reorganiza todo o sistema”, explica.
Por enquanto, o projeto ainda está em fase de estudos e precisaria ser discutido com a secretaria de Fazenda para revisão do impacto tributário. Segundo Junqueira, é possível fazer isso sem gerar um aumento ou diminuição dos benefícios já existentes. “Você vai realocar de um lugar para o outro.”
Estados com melhor desempenho ESG
No ranking de ESG nos estados, lançado em setembro deste ano pelo CLP (Centro de Liderança Pública), São Paulo aparece como o primeiro colocado.
O levantamento parte dos mesmos 86 indicadores que a instituição usa para elaborar o ranking de competitividade dos estados —também liderado pelos paulistas. A diferença é que os indicadores são redistribuídos em função dos critérios ambientais, sociais e de governança.
Equilíbrio de gênero na remuneração pública, por exemplo, entra no pilar social. Já os indicadores referentes à atuação do judiciário estão no eixo de governança, enquanto questões como saneamento básico foram contempladas nos eixos ambiental e social.
São Paulo lidera tanto na classificação geral ESG, quanto nos três eixos individualmente. Segundo Lucas Cepeda, coordenador de competitividade do CLP, ficar em primeiro lugar não significa que o estado está fazendo tudo certo ou tem a melhor performance possível.
“O primeiro está mais avançado se pegarmos a média, e o último menos. Mas não significa que o primeiro faz tudo melhor que o último”, afirma.
Até mesmo porque o estado de São Paulo tem tido deslizes. Em julho deste ano, o governo aderiu à campanha Race to Zero da ONU, que reúne atores comprometidos com a neutralização das emissões de carbono. No entanto, o estado não cumpriu sua meta climática mais recente, a de diminuir 20% de seus gases de efeito estufa até 2020.
Só no ano passado, foram emitidos 141,7 milhões de toneladas de CO2 equivalente, valor que deveria estar por volta de 114 milhões para que a meta original fosse cumprida.
Além disso, de acordo com o último Atlas da Mata Atlântica, São Paulo teve uma das piores variações na taxa de desmatamento anual. O estado estava se aproximando do desmatamento zero —quando não ultrapassa os 100 hectares— mas, entre 2019 e 2020, viu o índice saltar 402%: saindo de 43 para 218 hectares desmatados.
Ainda assim, São Paulo tem o melhor desempenho na comparação com os outros entes federativos.
Na visão de Cepeda, ESG não é algo que vai fazer sentido para todos os estados brasileiros num primeiro momento, visto que esse nível de sofisticação das políticas públicas não consegue ser atingido pela maioria.
“Mas para esses estados que já estão com uma maior capacidade técnica, uma realidade melhor, o tema passa a ser fundamental para a questão de atração de investimentos e financiamento de políticas públicas.”
ESG para atrair investimentos locais
O coordenador diz que a ideia do ranking é dar uma nova ferramenta para os estados conseguirem ampliar suas capacidades de atrair investimentos e financiar políticas públicas, o que pode ser especialmente relevante num cenário de arrocho fiscal.
“Os estados e os países que nos próximos anos não se antenarem à lógica do ESG vão ser excluídos dos fluxos econômicos globais”, acrescenta.
É o que também afirma Gabriela Ferolla, diretora-executiva da Seall, startup de gestão de impacto que participou da elaboração do ranking.
Para ela, faz todo o sentido olhar o ESG no âmbito da gestão pública, e alguns estados já entenderam isso.
“Quando a gente observa todo esse movimento global, em que os recursos estão sendo cada vez mais direcionados a partir de parâmetros de sustentabilidade, é muito importante para o setor público trazer essa linguagem para suas políticas”, afirma.
Segundo Ferolla, cada vez mais bancos de desenvolvimento nacionais, regionais e globais estão trazendo uma visão ESG para a qualificação de seus financiamentos.
Um exemplo vem do BDMG (Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais). Em 2020, a instituição teve um crescimento na sua carteira sustentável, com 58% do total desembolsado indo para esses ativos. Também foi o primeiro banco público brasileiro a emitir títulos sustentáveis, numa operação feita pela Bolsa de Nova York.
Minas Gerais é o quinto colocado no ranking ESG feito pelo CLP, e vem se mobilizando nessa agenda.
Segundo Fernando Marcato, secretário de Infraestrutura e Mobilidade do estado, Minas tem um plano de concessões com cerca de 12 projetos que possuem cláusulas ambientais, sociais e de governança.
“O dilema sempre é: qual o nível de efetividade que eu posso ter? É algo apenas indutor e principiológico ou eu posso impor multas? A gente optou por esse segundo caminho, e hoje todos os nossos contratos têm uma cláusula que se chama ESG”, afirma.
Marcato cita o exemplo do Aeroporto da Pampulha, cuja empresa vencedora do leilão vai precisar criar um programa de diversidade racial e de gênero. Na concessão da rodoviária de Belo Horizonte, a companhia ganhadora terá de instalar placas solares nos terminais.
No entanto, o principal teste do ESG nos contratos será com o rodoanel, maior projeto de concessão do estado, no valor de R$ 5 bilhões. Na parte ambiental, a empresa será obrigada a fazer o levantamento das emissões de carbono e neutralizá-las.
De acordo com Marcato, o descumprimento implicará em penalização. “É uma obrigação contratual como qualquer outra”, diz.
Na parte social, o secretário destaca as ações de direitos humanos, que foram baseadas numa resolução do Comitê de Direitos Humanos da ONU. “A concessionária [do rodoanel] será obrigada a fazer um mapeamento prévio sobre os impactos que a obra vai gerar em [relação a] possíveis violações de direitos humanos.”
Ele cita o caso de Belo Monte como exemplo a ser evitado em grandes projetos. A construção da hidrelética gerou um boom de prostituição em Altamira (PA), inclusive com casos de exploração sexual de crianças e adolescentes.
“Essa due diligence [diligência prévia] terá que ser feita no projeto, assim como um plano de mitigação dos impactos”, afirma.
A questão dos direitos humanos, inclusive, está ligada ao rodoanel antes mesmo do edital ser lançado.
Em fevereiro deste ano, o governo de Minas e a Vale assinaram um acordo de R$ 37 bilhões pela reparação dos danos causados pela tragédia de Brumadinho. O texto estabelecia que uma parte do valor seria destinado a projetos como o rodoanel, o que suscitou críticas.
Além do argumento de que o trecho rodoviário vai favorecer mineradoras como a Vale, vítimas do rompimento disseram que os recursos deveriam ser integralmente aplicados nas comunidades atingidas.
Segundo Marcato, o acordo com a Vale foi para indenizar os prejuízos do estado de Minas Gerais, e não interefere nas ações individuais e referentes ao município atingido.
Além disso, a obra do rodoanel terá obrigações com a população de Brumadinho, como a exigência para que a concessionária priorize a contratação de familiares das vítimas e a população da cidade.
Em relação às iniciativas ESG de Minas, o secretário diz que o estado tem se destacado no tema e que, recentemente, também aderiu ao Race to Zero.
“É um governo que acredita no investimento privado e a gente sabe que o investimento privado hoje não existe sem ESG. Há convergência sobre esse tema.”
Fonte: Folha