E lá se vão quase 20 anos de um dia triste, que ficou marcado na memória do Brasil — 29 de dezembro de 2001, quando, no auge da popularidade com o CD e DVD “Acústico MTV” (que viria a vender mais de um milhão de cópias), a cantora Cássia Eller morreu, subitamente, aos 39 anos, de infarto do miocárdio. A dor e a perplexidade foram experimentadas por muitos, mas de forma mais trágica pela mulher de Cássia, Maria Eugenia (que, naquele momento, estava em Brasília com o filho das duas, Francisco, então com 8 anos) e o parceiro musical e grande amigo Nando Reis, que recebeu a notícia em casa, em São Paulo.
— Foi um choque, a minha sobrinha que avisou. Ainda tive tempo de pegar a última ponte aérea para o Rio, e foi aos prantos que eu pedi a última vaga para o voo — conta Nando, que na noite desta quarta-feira se junta a Lan Lanh (percussionista da banda de Cássia) e a Chico Chico (o filho da cantora) na festa do Prêmio Multishow, em uma homenagem à amiga, com sucessos como “All Star”, “O segundo sol” e “Relicário”. — Convivo com a memória da Cássia ininterruptamente. Sempre toco nos meus shows as músicas que fizeram parte da nossa história, especialmente “All Star”, que escrevi sobre nós dois. O tempo é a soma de todos os dias, e a cada dia a lembrança dela me impacta mais.
Chico Chico, por sua vez, apresenta hoje no Multishow “Mãe”, que faz parte do seu recém-lançado álbum solo “Pomares”. E produz, junto com o violonista Rodrigo Garcia (que fez parte da banda da mãe) e o pianista Pedro Fonseca, o lançamento nesta sexta (dia em que a cantora faria 59 anos) da faixa inédita “Espírito do som” — uma composição de Péricles Cavalcanti e Chico Evangelista que Cássia apresentou em voz e violão, em 1985, em Brasília, em show que fazia com a amiga Janete Dornellas.
— Como a cantoria dessa música era muito marcante e o violão era muito simplezinho, vi que uma banda poderia botar pressão — explica Rodrigo, que isolou a voz de Cássia do registro em fita cassete e montou uma nova versão do blues com uma banda, da qual fizeram parte ele, Chico e Pedro, mais Cezinha (bateria), Kadu Mota (guitarra) e Marfa Kourakina (baixo).
Para Nando Reis, que produziu três discos de Cássia Eller (o “Acústico MTV”, “Com você… meu mundo ficaria completo”, de 1999; e o póstumo “Dez de dezembro”, de 2002), a palavra que melhor poderia definir o que os dois tiveram é “afinidade”.
— Nós encontramos um ambiente de conforto, de segurança e de admiração mútua, e nos reconhecíamos na forma com que vivíamos e como víamos nossa profissão. Havia a fascinante possibilidade de que aquela troca nos complementasse e nos enchesse de alegria. Era um terreno não só de conforto, mas de prazer — define. — Nunca tivemos qualquer tipo de desentendimento ou dificuldade. Ela se reconhecia na forma com a qual eu escrevia sobre amor, era muito fácil. Tenho um arsenal de memórias ao qual me apego.
Vinte anos depois, ele acredita que a obra de Cássia “permanece vivíssima”.
— Ela diz muito, especialmente neste momento tenebroso que vive o Brasil, dos ultraconservadores obscurantistas que tentam impor a sua agenda de uma maneira hipócrita e estúpida. A Cássia sempre foi uma voz dissonante e transgressora e uma afirmação da sua independência, sendo lésbica, cantora e mãe. Ela não era uma ativista e muito menos uma militante, mas conseguiu ser uma figura exemplar através da música, pela qualidade do seu trabalho e por sua individualidade.
Viúva de Cássia, Maria Eugenia Vieira Martins (leia aqui a entrevista completa) diz pensar muito no que a cantora estaria achando do Brasil de 2021 — e, principalmente, como estaria reagindo a ele.
— É o imponderável, mas eu acho que ela ia estar gritando muito. Apesar de não ter tido uma formação acadêmica, a Cássia era muito inteligente, muito além do próprio tempo. Ela tinha bagagem de leituras e me dava um banho de consciência política e engajamento — diz. — Cássia já gritava com sua música e com o jeito que vivia. Ela cantava aquilo em que acreditava e isso convencia as pessoas. Se a pessoa é autêntica, sempre dá certo, as pessoas sempre vão se identificar. E o Chico segue nessa mesma onda, só que, diferentemente da mãe, ele também é compositor.
— O Chico não tem essa atitude individualista, de dar carteirada [porque é filho de artista] — defende Rodrigo Garcia, produtor a quem Eugenia confiou não só o início da carreira do filho (no selo independente Porangareté) como a organização do material de arquivo de Cássia que é periodicamente lançado.
— Poderia ter escolhido administrar o espólio e viver disso, mas preferi ter a ajuda de pessoas como o Rodrigo — diz Eugenia. — E agora que o Chicão está se afirmando mais como artista, ele começa a decidir mais sobre as coisas da mãe junto com o Rodrigão. Aos pouquinhos, isso está saindo das minhas mãos.
Planos para os 60 anos
Ao longo dos anos, Rodrigo Garcia cuidou da edição de álbuns como “O espírito do som, vol. 1” (de 2015, com gravações recuperadas de uma fita cassete que Cássia Eller gravou em 1983) e “Todo veneno vivo” (de 2019, ampliação de um álbum ao vivo de 1998). Em 2017, ele lançou também “Chocante”, canção que a cantora gravou em 1986, em Brasília, para o musical “Gigolôs”.
— A gente tenta ser artístico e criterioso, para não sair lançando tudo o que tem. A gente meio tenta que adivinhar o que a Cássia gostaria que fosse lançado — explica ele, para quem a grande festa de lançamentos vai ser em 2022, quando a artista completaria 60 anos.
Entre planos para reedições de álbuns em vinil, com livretos, há ainda o projeto, por exemplo, de fazer um disco da Cássia compositora, área em que ela pouco atuou, conta Rodrigo.
— Juntando umas cinco músicas já lançadas, umas vinhetas e ideias, mais uma canção que ela começou a fazer com a Marisa Monte, dá para chegar a dez faixas. Também queremos lançar o segundo volume do “Espírito do som”, com gravações ao vivo. E quem sabe fazer duetos dela com cantores com os quais ela nunca gravou, a partir de uma pré-produção de voz e violão para o disco “Com você… meu mundo ficaria completo”.
Fonte: O Globo