Afirmações pseudocientíficas contribuíram para o enfraquecimento das políticas ambientais desde a década de 90 no Brasil, revela um estudo publicado nesta terça-feira (25) pelo periódico científico Biological Conservation.
“O ataque às políticas ambientais foi impulsionado por um esforço sistemático e velado de um pequeno grupo de contrários para desinformar os tomadores de decisão e a sociedade”, diz o artigo, que define os contrários —também chamados de céticos ou negacionistas— como grupos com credenciais científicas que buscam influenciar a opinião pública e os tomadores de decisão para evitar o avanço de políticas regulatórias.
A pesquisa analisou as estratégias de um grupo liderado pelo agrônomo Evaristo de Miranda, pesquisador da Embrapa conhecido pelos setores do agronegócio e do ambientalismo por apresentar informações que divergem dos dados científicos sobre a conservação ambiental no país.
O estudo analisou o currículo de Miranda na plataforma Lattes, onde o pesquisador cita a publicação de 83 textos como artigos científicos completos.
A maior parte, no entanto, consiste em ensaios ou notas técnicas sem validação acadêmica. Apenas 17 deles foram publicados em periódicos científicos. Dentre esses, apenas dez artigos estão indexados em bases de dados reconhecidas por cientistas.
Além da publicação em revistas não científicas e sem a exigência de revisão por pares, o estudo verificou que boa parte dos textos não traz detalhamento de metodologia e não disponibiliza os dados, o que impede a verificação das informações e o debate no meio científico.
O estudo identificou o impacto das falsas controvérsias sobre as políticas públicas de quatro áreas: Código Florestal; terras indígenas e unidades de conservação; queima de cana-de-açúcar em São Paulo e incêndios.
“A maioria dos focos registrados em julho foram de queimadas em sistemas de produção pouco tecnicizados”, afirmou Miranda em agosto do ano passado, em texto publicado no site Revista Oeste.
No entanto, segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), em julho de 2021 apenas 39% dos focos de incêndio estavam em áreas de uso agrícola consolidadas, enquanto 48% foram registrados em áreas desmatadas após 2017.
Segundo o estudo, o argumento de Miranda baseou decisões do governo federal que desmontaram políticas de controle ambiental e fiscalização.
Em artigo publicado em 2008, Miranda defendeu que a plena implementação do Código Florestal inviabilizaria a produção agrícola na maior parte do país, para a qual só restaria 29% do território nacional.
O argumento acompanhou a produção de mapas sobredimensionados, que não consideravam a proporcionalidade das exigências de conservação das matas ciliares em função dos diferentes tamanhos dos rios.
Ao comparar os mapas divulgados por Miranda com dados da hidrografia e seguindo as regras do Código Florestal de 1965, o climatologista Carlos Nobre verificou que os números superestimaram as áreas de preservação de matas ciliares em 309%.
“O cenário em que as Áreas de Preservação Permanente não possam ser consideradas parte da Reserva Legal [das propriedades rurais] levaria a números negativos [de áreas disponíveis para a agricultura] na Amazônia e no Pantanal”, defendeu o agrônomo.
A tramitação para alterar o Código Florestal ganhou força no ano seguinte à publicação do artigo, em 2009, quando as menções ao agrônomo aparecem em 29 registros do Congresso. Em 2012, o Congresso aprovou uma nova versão da lei com anistia a 58% do desmatamento ilegal feito até 2008.
“A desinformação apresentada por Miranda e colaboradores desempenhou um papel central no enfraquecimento do Código Florestal”, diz a pesquisa, que analisou 119 documentos do Congresso com menções ao nome de Miranda.
A maior parte das menções expressavam apoio às suas afirmações, vindas majoritariamente de parlamentares da bancada ruralista.
O argumento sobre a falta de terras para a agricultura também foi usado por Miranda para se contrapor à criação de áreas protegidas. Em texto publicado em 2008, ele afirma que as demandas por demarcação de terras indígenas e criação de unidades de conservação excederiam o tamanho do território nacional.
A partir de 2010, as ações de criação de unidades de conservação e demarcação de terras indígenas declinaram e desde 2018 estão paralisadas.
Outro alvo de falsas controvérsias, as multas ambientais sofreram drástica redução no governo Bolsonaro sob o argumento de que seriam aplicadas de forma arbitrária.
“Vive-se muita arbitrariedade. Lavram-se multas com base em imagens de satélite, sobrevoando de helicópteros, sem ouvir o produtor, sem colocar o pé na propriedade para saber se o que foi multado estava autorizado”, afirmou Miranda em entrevista ao Canal Rural, no fim de 2018.
À época, ele havia sido convidado pelo presidente, então recém-eleito, para apoiar o projeto ambiental do governo Bolsonaro.
“Multas e embargos apoiaram a redução drástica de desmatamento entre 2005 e 2007. Usa-se tecnologia de monitoramento remoto, mas as ações de campo têm papel central e são altamente eficazes na redução do desmatamento”, contrapõe o estudo, citando pesquisas científicas.
Em artigos publicados em 1994 e 1997, Miranda afirmou que a queima de cana-de-açúcar seria positiva para o meio ambiente e não teria impacto sobre a saúde humana.
O texto serviu de base para que a Justiça negasse, nos anos 90, uma ação do Ministério Público que
pedia a proibição da prática.
O estado de São Paulo só a proibiu em 2016, a despeito do consenso científico sobre os impactos da queima da cana para a saúde e o ambiente —com evidências como o aumento da internação hospitalar de crianças e idosos e a perda de fertilidade dos solos.
“Há outros exemplos de grupos atuantes com informações pseudocientíficas sobre vacinas, Covid-19 ou mudanças climáticas, mas o caso do Evaristo de Miranda se destaca pela sua longevidade, porque manteve influência sobre diferentes governos, desde FHC, Lula, Dilma até Bolsonaro, com impacto em diferentes áreas da política ambiental”, afirma o professor Raoni Rajão, principal autor do estudo e coordenador do Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
O estudo também contou com a participação de 12 pesquisadores da UFMG, da USP (Universidade de São Paulo), do Inpe, da UnB (Universidade de Brasília), da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e da Universidade Autônoma de Barcelona (Espanha).
O artigo também aponta a influência de Miranda sobre os discursos presidenciais. Ao discursar na Assembleia Geral da ONU em 2019, o presidente Jair Bolsonaro usou dados do autor. Naquele período, orientações do Itamaraty enviadas a diplomatas no exterior também seguiram os dados de Miranda.
No último agosto, a Embaixada do Brasil em Washington voltou a distribuir um artigo do autor que negava a ocorrência, no mês anterior, de incêndios florestais na Amazônia.
“Ao considerá-los indignos de atenção, a comunidade científica permitiu que falsas alegações científicas permanecessem incontestadas. A academia também é culpada pela longa e crescente capacidade das falsas controvérsias científicas de influenciar as políticas”, afirma o artigo, que recomenda a abertura de espaço em revistas científicas para “definir e discutir falsas controvérsias científicas de maneira rigorosa”.
A Embrapa Territorial afirmou à Folha que não se pronunciará sobre o assunto. Procurado, Evaristo de Miranda não retornou aos contatos da reportagem.
Fonte: Folha