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Entrevista com Delfim Netto

Demora na aprovação da PEC emergencial aumenta incerteza em cenário de coronavírus’, diz Delfim

Ex-ministro afirma que a PEC dará ao governo condições reais de controle de despesas e critica dificuldade do Executivo de se comunicar

A reforma da Previdência foi importante, mas é a PEC emergencial  que dará condições reais de controlar as despesas para retomar, de fato, o equilíbrio fiscal e regular despesas que hoje são incontroláveis. A avaliação é do ex-ministro Delfim Netto, para quem a demora na aprovação da PEC 186 cria grande insegurança, pois soma a incerteza fiscal com o contexto do coronavírus.

A PEC emergencial prevê, entre outras medidas, o corte em salário e na jornada de trabalho dos servidores públicos.

Para Delfim, há contradição entre as prioridades do Legislativo e do Executivo, que tem se expressado mal. Nesse contexto, segundo Delfim, também é difícil imaginar que uma Casa Civil militarizada possa cumprir o papel de intermediação com o Congresso.

“A negociação política joga um xadrez com peças invisíveis e movimentos aleatórios. E isso exige outro tipo de comportamento para poder unir o Congresso. Falta hoje no governo a capacidade de fazer tricô com quatro agulhas”, diz

O ex-ministro ressalta ainda que as condições para a sociedade acreditar que o crescimento vai voltar estão mais difíceis do que no início de 2019. “É preciso se conformar com o fato de que vamos crescer de 1,5% a 2% neste ano, mas temos de mexer naquilo que potencialmente está sob nosso controle.” Leia a seguir a entrevista:

No começo do ano passado, o sr. tinha uma expectativa muito boa com relação ao novo governo. Como está agora?

Caminhamos menos do que a gente esperava. A aprovação da reforma da Previdência foi importante mas, ao contrário do que as pessoas pensam, não reduz de maneira significativa os gastos. O problema fundamental que existia lá, e que continua existindo, é que o governo não conseguiu os instrumentos para controlar as despesas endógenas que estão inscritas na Constituição.

Qual seria a reforma mais adequada para isso?

A reforma mais importante, a que deveria ser prioridade número 1 tanto do Executivo quanto do Legislativo, é a PEC emergencial 186. É ela que vai dar os gatilhos para começar a regular essas despesas que são incontroláveis, que crescem por conta própria. Vai devolver para a sociedade brasileira uma expectativa mais adequada de que haverá o controle fiscal. Hoje há uma grande contradição entre as prioridades do Executivo e do Legislativo. O Executivo tem se expressado muito mal, não tem dito com clareza quais são suas prioridades. Fica no ziguezague. Claro que no Brasil onde se puser a mão tem alguma reforma importante para fazer, mas a que dará as condições para que as outras aconteçam é a que dá a possibilidade de controlar as despesas que crescem endogenamente.

E a reforma tributária?

Claro que é importante. Mas o projeto está muito verde. Primeiro precisa de um estudo profundo, depois de números e finalmente de um bom projeto. Mas um bom projeto de reforma tributária não é obra de economista, mas, sim, de tributarista. Como sempre foi no Brasil, a reforma de 1946/47, a de 1964… Todas foram organizadas por grandes tributaristas. Onde eles estão? Essas reformas todas foram precedidas de estudos profundos. Há uma boa vontade enorme, acho que o (Bernard) Appy é uma pessoa que se inteirou disso, só que o projeto ainda não tem a profundidade necessária que foi precedida, como todas as reformas do mundo, por um grupo de tributaristas. Depois disso tudo é que vai para a Câmara para corrigir, melhorar ou piorar. Acho que, quando se põe essa reforma na frente, é simplesmente para não aprovar a que é mais necessária, que é a PEC 186.

Mas isso seria uma estratégia do Legislativo ou do Executivo? Será que o ministro Paulo Guedes não está colocando foco nisso?

Acho que, como está uma confusão enorme – porque o que esse governo mais produz é confusão -, não se sabe. Acho que o Paulo Guedes também não tem ideia de qual é a boa reforma. Ele é um economista também. Tem, como eu, os mesmos defeitos. Nós pensamos que podemos fazer uma reforma tributária, mas, insisto, é coisa para tributarista e eles precisam ser mobilizados.

A PEC Emergencial seria mais importante ainda neste contexto do coronavírus?

A falta dessa PEC 186 introduz uma grande insegurança, pois soma a incerteza fiscal com o contexto do coronavírus. As condições hoje para a sociedade acreditar que vai voltar o crescimento são mais difíceis do que eram no início de 2019. Por isso, nós devíamos concentrar todas as nossas atenções na prioridade número 1. Fizemos um grande avanço no controle fiscal. Isso estabilizou a relação entre a dívida e o PIB, permitiu uma política monetária muito inteligente, que começou com Ilan Goldfajn e continua com Roberto Campos Neto. Hoje, pela primeira vez, o Brasil tem condições de fato de ter uma taxa de câmbio flutuante porque a taxa de juro real externa mais o risco-Brasil é praticamente igual à taxa de juro real interna, não existe mais ‘carry trade’. Pelo contrário, o capital está indo embora porque está se pagando a dívida em dólares, pois é melhor fazê-la em reais. Estamos caminhando para uma normalidade e precisamos da segurança de que esse processo vai continuar, se aprofundar. É preciso convencer a sociedade de que realmente a política fiscal está sob controle e que a política monetária está na direção certa.

Essa questão do Orçamento Impositivo pode atrapalhar em algo?

O Orçamento Impositivo não impede que o Executivo faça contenção de despesas, contingenciamento. É normal no mundo inteiro. O que não é normal é a Constituição condicionar todas as despesas e também o Executivo a ficar com apenas de 4% a 5% das despesas discricionárias. Há uma incompreensão generalizada da qual o governo participa. O governo já não consegue transmitir com clareza as coisas. E é uma pena porque a parte fiscal do governo caminha bastante bem.

Mas, em compensação, a articulação política…

O governo não sabe negociar nada. A Casa Civil é do arco da velha. A negociação deles é salomônica. O Congresso quer tomar alguma coisa e eles dizem: se cortar pelo meio, eu aceito.

O sr. acha que o Paulo Guedes ainda é fiador desse governo?

O Paulo é competente, corajoso, tem um bom programa, mas talvez tenha sido ambicioso demais e tenha posto muitas ideias ao mesmo tempo em circulação. Ocorre que as prioridades do Executivo e do Legislativo não coincidem. A realidade, no final, vai acabar se impondo. Mas com custos muito maiores do que seria necessário.

O que seria?

Você precisa de um tipo de negociação para equilibrar os Poderes. Não pode ter o Executivo mandando no Legislativo e muito menos o Legislativo mandando no Executivo. Isso tudo é culpa da política agressiva do Bolsonaro. Em qualquer lugar do mundo, nas democracias com Estado de Direito, quando um presidente se elege sem maioria no Congresso, ele vai tentar negociar com outros partidos um programa consensual. Não mais o dele, e, sim, um programa que ele acerta com os outros para construir uma maioria e aprovar isso. O Bolsonaro chegou com uma ideia de jerico: primeiro dizendo que toda política era criminosa e, segundo, querendo inventar uma nova política, que terminou em uma lambança.

Em que sentido?

A Casa Civil do Bolsonaro fez as maiores lambanças do mundo desde o início. O conceito está errado. Ele foi eleito por uma maioria relativa, mas não conseguiu a maioria no Congresso, ficou com 10%. E é impossível administrar sem uma maioria estável no Congresso. Ele tem muito poder, mas não tem todo o poder. Ele precisava de uma negociação política.

E qual o risco dessa situação para aprovar o que se precisa neste ano curto do Legislativo?

Nós deveríamos estar concentrados em aprovar o que é de mais importante, que é a PEC Emergencial. Bolsonaro ainda tem de aprender porque ele se mexe muito mal nesse espaço do presidencialismo de coalizão. E ele não entendeu realmente como esse sistema funciona. Então essa ideia de inventar uma nova política foi uma barbaridade. E terminou que até o partido partiu.

Governo e Congresso sempre responderam mais rápido para tomar medidas importantes em conjunturas de crise. O contexto atual pode ser uma fonte de pressão?

Temos a vantagem e o ônus de estar no mundo. O que está ocorrendo é que visivelmente teremos uma redução do nível de crescimento do mundo. Este coronavírus é mais uma das pestes que há séculos atacam a sociedade. Vai dar uma volta no mundo e daqui a pouco vai se transformar em coisa comum. Mas no caminho vai produzindo incertezas, angústias, desespero. Seguramente se poderíamos crescer de 2,5% a 3%, hoje poderemos crescer de 1,5% a 2%. Primeiro é preciso se conformar com este fato, mas é preciso dar as condições para ir corrigindo o sistema de tal forma que, quando voltar ao normal, o País terá como crescer mais. Temos de mexer naquilo que potencialmente está sob nosso controle.

O que falta hoje para as reformas prioritárias deslancharem?

Falta hoje uma organização mais eficiente do governo. Precisa de uma Casa Civil competente e que cumpra o seu papel. É muito difícil imaginar que uma Casa Civil militarizada possa cumprir este papel. São pessoas honestas, trabalhadoras e inteligentes, mas que são preparadas para a guerra. Não são preparadas para a negociação política porque isso é um outro universo. A negociação política joga um xadrez com peças invisíveis e movimentos aleatórios. E isso exige um outro tipo de comportamento para poder unir o Congresso. Falta hoje no governo a capacidade de fazer tricô com quatro agulhas.

Mas o deputado Onyx Lorenzoni estava na Casa Civil…

Aqui não é qualquer político, é preciso ter um tipo de conhecimento, habilidade. O Padilha ajudou o ex-presidente Michel Temer a fazer um parlamentarismo de ocasião com prazo determinado. O Temer administrou isso fingindo que não era presidente, mas que era primeiro-ministro. E os deputados eram parte do governo. Ele mobilizou e fez a lei do teto de gastos que parecia impossível. E isso deu um grande protagonismo para o Legislativo, que gostou do poder. A coisa é um pouco mais complicada. Este governo não está preparado para este jogo e está apanhando bastante.

Qual o caminho?

O governo vai ter de aprender que não há solução fora do entendimento com outros partidos para construir uma maioria estável e executar um programa consensual que resultará desta combinação. Porque o governo não tem maioria no Congresso e aí não pode impor a vontade dele. Vai ter de negociar com o Legislativo, se quiser fazer funcionar. Se não aprender isso, o País não vai crescer e ele [Bolsonaro] vai perder a eleição feio. A atitude do Bolsonaro antecipou a discussão sobre a eleição. Hoje, no Congresso, a discussão é para saber quem vai ser o presidente em 2022. Você tem o Bolsonaro tentando se reeleger e, para isso, precisa do apoio do Guedes. O Guedes precisa das concessões do Congresso. O Congresso, que tem outro candidato, não dá as concessões. A única saída é voltar ao Congresso como se ele tivesse começado o governo, sentar na mesa e tentar negociar um novo programa. E o Legislativo participar do governo é coisa natural. Não é pecaminoso o governo escolher auxiliares dos partidos que estão dando apoio porque o poder está também com eles.

Qual conselho o sr. daria para o ministro Paulo Guedes?

Eu não dou conselho para ninguém. O Paulo tem um bom programa. Na parte econômica, ele continuou o programa do Temer, até com as mesmas pessoas. E os ganhos são visíveis.

Como o sr. avalia essa ação coordenada dos países nesta conjuntura?

Acho que é fundamental para ter um efeito menor do coronavírus na desaceleração da economia mundial. Os juros no mundo estão baixos, quando não negativos, mas é importante dizer que o Brasil tem projetos pagando taxas de 6% a 7% por 25, 30 anos. O Brasil é o maior hedge para o capital mundial. Nós estamos fora do espaço de conflito que está se formando na Europa. Essa é uma vantagem que as pessoas vão perceber na medida em que crescem os riscos de uma arbitragem militar na Europa. O mundo mudou, mas o Brasil ainda é um lugar de bons investimentos. Precisa de segurança jurídica, equilíbrio fiscal e boa política monetária. Isso tudo é virtualmente possível, mas, para que seja efetivamente possível, é preciso organizar um governo que divide o poder com outros partidos e que ajudem a fazer a maioria no Congresso. O presidente tem que entender que ele é que tem de ser político e tem de ter a humildade de sentar na mesa para negociar.

Antônio Delfim Netto é um economista, professor universitário e político brasileiro. Durante o regime Militar, entre 1969 e 1974, foi ministro da fazenda. Delfim tem seus artigos constantemente divulgados pela mídia nacional, e assina a coluna  “Sextante”, publicada regularmente na revista Carta Capital.

Foto: A negociação política joga um xadrez com peças invisíveis e movimentos aleatórios’, diz Delfim Netto – Reprodução /Felipe Rau/Estadão

Fonte: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,demora-na-aprovacao-da-pec-emergencial-aumenta-incerteza-em-cenario-de-coronavirus-diz-delfim,70003227187

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