Desde 2018, a marca de 111 anos dobrou a receita e investiu como nunca em novos produtos. A meta agora é ir além de um negócio de laticínios
A fabricante de laticínios Catupiry é, talvez, o melhor exemplo de uma empresa familiar brasileira cujo carro-chefe ficou tão presente no imaginário dos consumidores que acabou por batizar uma categoria de alimentos. O requeijão do tipo catupiry, cuja consistência supera em muito a de concorrentes, foi um dos primeiros ingredientes a denotar um toque gourmet a um prato ao se tornar indispensável em pizzarias artesanais mantidas pela extensa comunidade italiana de São Paulo. A fama alçou o catupiry a um patamar diferente — e melhor — do que os concorrentes nas gôndolas de supermercados. E, por isso, a iguaria foi praticamente a única fonte de receitas ao longo da maior parte dos 111 anos da empresa fundada pelo casal de imigrantes italianos Mário e Isaíra Silvestrini em Lambari, Minas Gerais, e transferida em 1949 para o bairro do Bom Retiro, no centro da capital paulista. De lá para cá, vieram algumas variações de embalagem, sabor e textura, e novos produtos, como bisnagas para pizzarias e copos para consumo em casa. Apesar dos lançamentos, em essência a Catupiry dependia 100% do requeijão criado ali mesmo e cuja fórmula é um segredo industrial guardado com zelo comparável ao do xarope da Coca-Cola.
Nos últimos cinco anos, a direção da Catupiry decidiu mudar radicalmente o tempero do negócio. E, de lá para cá, a empresa vem exibindo resultados que chamam a atenção de analistas do mercado de alimentação. O faturamento no período dobrou e chegou perto do primeiro bilhão de reais em 2022. As receitas cresceram num ritmo muito superior ao da evolução das vendas, cuja alta foi de 41% no período. O tíquete médio cresceu em razão, basicamente, de um reforço inédito no portfólio. De 2018 para cá, o sortimento da empresa passou de 98 para 132 produtos — dos quais 25% foram lançados no ano passado. Alguns são incrementos do ingrediente principal, como potes de Catupiry com ervas finas e de azeitonas. A maioria, porém, é de produtos em categorias completamente alheias à companhia até então. Exemplos disso são uma linha de alimentos congelados, como quiche e dadinho de tapioca. Para fazer jus à herança italiana, no ano passado a empresa lançou um queijo grana padano, típico da parte norte da Itália.
Cafeteria: a empresa focou o atendimento do food service no Rio e em São Paulo; nas demais praças, a tarefa é de distribuidores (Leandro Fonseca/Exame)
No ano passado, foi lançada ainda uma linha chamada Plantury, de requeijões à base de plantas e sem ingredientes lácteos. Entre os sabores estão alho, cebola, salsa e cheddar, todos veganos, e dentro de uma tendência global de indústrias de alimentos tradicionais para fazer frente à ameaça trazida pelas foodtechs, boa parte delas com processos novos e mais sustentáveis. É um movimento similar ao da marca americana de cream cheese Philadelphia, da Kraft Heinz. Em 2022, a Catupiry anunciou o primeiro cream cheese à base de plantas em 140 anos de história.
Ao todo a companhia investiu 5 milhões de reais no novo portfólio. “Éramos uma empresa de um produto só e percebemos que não estávamos aproveitando a força da marca”, diz Daniel Zanuto, diretor financeiro há duas décadas. De 2020 para cá, ele teve a missão de colocar de pé uma estratégia para reduzir a exposição da empresa ao vaivém nos custos do leite, principal matéria-prima do requeijão. Em agosto do ano passado, o preço chegou a disparar 61% na comparação com janeiro, mas cedeu nos meses seguintes e fechou o ano com alta de 13%, segundo dados da Esalq/USP. Entre os principais vilões esteve a seca causada pelo fenômeno climático La Niña em São Paulo e em Minas Gerais, onde está a maioria dos mais de 1.000 fornecedores de leite da Catupiry. Boa parte deles é de pequenos produtores rurais expostos às intempéries. “Com um portfólio maior, a intenção foi também reduzir a dependência do leite e diminuir o efeito das flutuações de preço.”
– (Arte/Exame)
Em paralelo aos novos produtos, a Catupiry mudou quase tudo nos canais de vendas para ter uma presença de fato nacional. Até então, ela tinha uma presença forte em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas raramente os produtos da marca estavam em evidência em supermercados de outros estados. Muito em razão de uma gestão baseada no cuidado com cada detalhe da operação, típica de empresas familiares (a segunda e a terceira geração da família Silvestrini seguem no dia a dia do negócio), as vendas eram negociadas diretamente com varejistas. Trata-se de uma raridade na indústria de alimentos. Num país como o Brasil, em que grandes varejistas detêm só 25% das vendas de alimentos, e milhares de redes de supermercados de pequeno e médio porte ditam preços e marcas favoritas nos rincões, a praxe dos fabricantes é revender a distribuidores com capilaridade para levar os produtos aos quatro cantos. A aposta nesse canal, contudo, veio só após a contratação de Nicolau Ahn, executivo com passagens pelos times de vendas de Ambev e BRF, alçado a superintendente comercial em 2019, num esforço da família de oxigenar a gestão. De lá para cá, a empresa passou de quatro para 57 distribuidores de varejo. “Eles já representam 20% das vendas”, diz Ahn. “Estamos presentes em todas as capitais e em mais de 40.000 pontos de venda pelo país.”
Alimentos congelados da Catupiry: aposta em produtos mais elaborados (Leandro Fonseca/Exame)
Com mais gente trabalhando pela abertura de mercados Brasil afora, os times internos de vendas da Catupiry ficaram focados em grandes clientes: as 100 maiores redes de supermercados viraram prioridade. Isso permitiu, ainda, adotar práticas arraigadas entre concorrentes há muito tempo, e ainda inéditas por ali, como tabelas regionais de preços aos distribuidores e varejistas. E, em paralelo, foi possível reforçar a atuação no food service. Antes, pizzarias do país inteiro compravam diretamente da fábrica, num processo inerente a desafios logísticos — pizzarias de Manaus, por exemplo, só recebiam as bisnagas de catupiry após dias de viagem. Hoje em dia, a atenção do food service está em 5.000 restaurantes de São Paulo e Rio de Janeiro com recorrência semanal de compras e para quem a Catupiry tem uma equipe em campo dedicada a tirar os pedidos. O restante é atendido pelos distribuidores. “Depois da consolidação no food service, vejo também espaço para uma atenção maior ao varejo e ao consumidor final”, diz Adriano Gomes, sócio-diretor da Méthode Consultoria e professor da ESPM.
– (Arte/Exame)
Para os próximos meses, haverá mais novidades saindo do forno da Catupiry. Em maio, 14 produtos voltados para o consumidor final vão estrear nas gôndolas. Outros oito devem reforçar o mix do food service. Há também planos para os canais de vendas. Na sede da empresa, um empório gourmet voltado para o consumidor final traz a linha completa de produtos e algumas iguarias só vendidas ali, como sorvetes e bolos de catupiry. Em 2023, uma segunda loja será inaugurada no Itaim Bibi, bairro nobre da capital paulista. Em até dois anos, a meta da direção da empresa é reforçar o apelo ao consumidor final com a abertura de lojas franqueadas da marca. A referência é a Casa Bauducco, ponto de venda dos produtos da indústria de alimentos também fundada por imigrantes italianos em São Paulo, cuja primeira unidade franqueada foi aberta em 2015 — hoje, são 130. Para quem entende de canais de vendas, a estratégia da Catupiry é uma tendência irreversível. “A abertura de uma loja monomarca bem estruturada leva ao aumento das vendas dos produtos da mesma marca em outros canais”, diz o consultor Marcelo Cherto, há 20 anos referência no setor de franquias. “A empresa acerta ao abrir pelo menos um ponto de venda próprio, de modo a resolver rapidamente os ajustes antes de envolver franqueados.”
Empório Catupiry, em São Paulo: venda para consumidor final está no radar da companhia, assim como abertura de franquias (Leandro Fonseca/Exame)
Um desafio no horizonte da Catupiry pode vir da governança incomum. A companhia não tem um CEO. A administração está com quatro superintendentes, que respondem a sócios de quatro famílias descendentes dos fundadores. “Os sócios têm interesse em participar da administração do negócio e não veem necessidade de uma figura central como presidente”, diz Ahn. A tomada de decisão, em ocasiões como essa, costuma ser um gatilho para impasses ou atrasos. “A tomada de decisão pode ser mais rápida, caso a família esteja alinhada”, diz Silvia Martins, diretora de soluções para famílias empresárias na Fundação Dom Cabral. “Mas também pode ter desafios como a falta de direcionamento claro e objetivo com muitas pessoas pensando na estratégia e na interlocução desses objetivos.” Até aqui, a gestão da Catupiry tem dado conta do recado. Os lançamentos para 2023 estão dentro do prazo, e a empresa se prepara para reformas nas fábricas e para a chegada de novos distribuidores ainda neste ano. Se tudo correr bem, terá sido só mais um feito extraordinário numa empresa que já mudou a forma como os brasileiros comem.
Fonte: Exame