Empresários encontram dificuldades para conseguir crédito e investir no crescimento de seus negócios
Dificuldades do mundo corporativo, como a falta de representação e o subaproveitamento de profissionais, fazem com que pessoas negras decidam abrir seus próprios negócios. O preconceito, porém, dificulta o acesso ao crédito e atrapalha o crescimento dessas empresas.
“Você precisa provar seu valor a todo momento e isso é cansativo”, diz a empresária Joyce Venâncio sobre ascensão profissional em espaços majoritariamente brancos.
Há 22 anos, ela abriu a Preta Pretinha, que faz bonecas de pano com diversos tons de pele e tipos de cabelo. A decisão veio após trabalhar anos como produtora e não encontrar recolocação profissional.
A paulistana Silvia Scagliarini, 58, também decidiu abrir seu negócio após se frustrar com o mercado de trabalho. Ex-coordenadora de projetos, ela fundou a Vivmais, voltada ao bem-estar e saúde de pessoas mais velhas. “Na escola de negócios, eu era a única mulher negra com um projeto focado em longevidade”, diz.
Quem empreende busca respostas para frustrações do cotidiano e com a população negra não é diferente, afirma Edgard Barki, coordenador do Centro de Empreendedorismo e Novos Negócios da FGV.
Para ele, a alternativa não deve ser vista como uma solução, porque o preconceito enfrentado em outros ambientes se mantém. “É preciso que as pessoas tenham desejo de empreender e não o façam apenas para sobreviver.”
O percentual de empreendedores por necessidade, em geral pessoas desempregadas que ofertam um produto ou serviço, é grande na população negra. Cerca de um terço do total (34%), segundo dados do Plano CDE, empresa de pesquisa e consultoria.
O estudo lista outros perfis de empreendedores negros: Do total, 35% empreendem por vocação, 22% apostam em pautas raciais ou sociais e 9% se encaixam em mais de um perfil. O levantamento, feito em 2019, ouviu 1.220 pessoas em todo o país.
Em 2021, a taxa de informalidade da população brasileira foi de 40%. O percentual foi maior entre pretos (43%) e pardos (47%) em comparação com brancos (32,7%), segundo estudo do IBGE.
Empresários por vocação sempre existiram entre os negros, mas conquistas, como a Lei de Cotas, que aumentou o acesso à universidade, contribuíram para a criação de redes de apoio ao empreendedor, diz Daiane Almeida, líder de startups digitais do programa Sebrae for Startups.
Para ela, apesar do alto valor movimentado por negros, investidores não se interessam pelo comportamento de consumo desse público. “Quando o não negro fala com investidores, querem saber o quão grande o negócio pode ser. Se o empresário é negro, as perguntas começam por sua capacidade, sem se preocupar se o negócio é promissor.”
Em 2021, pessoas negras consumiram o equivalente a R$ 2 trilhões, estima pesquisa feita pelo Instituto Locomotiva e pela Feira Preta.
Silvia, da Vivmais, conta ter desenhado seu empreendimento em cursos do Sebrae, em 2015. Após ter a ideia, apresentou o projeto a investidores e não teve retorno. “Sempre tive vontade de empreender, mas não sabia em qual tipo de negócio”, diz.
Em 2019, após pesquisas, ela inscreveu a empresa em um edital do Conselho do Idoso. Aprovada, Silvia testou o modelo de negócio. Em 2021, após o término do edital, ela abriu a Vivmais com investimento próprio. O aplicativo da empresa faz o “match” entre a necessidade da pessoa e o prestador de serviços, como terapeuta ou enfermeiro.
Quatro mulheres fazem a gestão da ferramenta e dos 150 profissionais cadastrados, que atendem capital paulista e região metropolitana. Segundo ela, todos passaram por um treinamento em gerontologia, especialidade dedicada ao bem-estar de pessoas mais velhas. Os valores são cobrados por hora, a partir de R$ 120.
Criar ambientes acolhedores para o consumidor preto ou responder a demandas ignoradas pelo mercado são características frequentes das empresas lideradas por pessoas negras, diz Barki, da FGV.
Esse foi o caso de Joyce, da Preta Pretinha. Segundo a empresária, a falta de bonecas negras nas lojas a levou a abrir a marca. Antes da Preta Pretinha, Joyce e as irmãs Lúcia e Cristina abriram um café na zona oeste de São Paulo, fechado pela falta de clientes. “Erramos em não pesquisar o mercado. Depois da frustração, busquei conhecimento.”
Ela conta que sua avó fazia bonecas de pano para ela e as irmãs brincarem. A decisão de investir em brinquedos inclusivos partiu daí. Além de bonecas negras, a loja tem bonecos cadeirantes, com deficiência visual, asiáticos e ruivos, entre outras características.
Em 2021, a loja faturou R$ 576 mil. As bonecas são vendidas online e na loja em São Paulo, na Vila Madalena, e custam de R$ 19,90 a R$ 386.
“O afroempreendedorismo é um termo recente, mas tem pessoas fazendo isso há mais de 20 anos”, diz Barki, da FGV.
Na clínica odontológica Ayo, centro do Rio de Janeiro, a identidade afrobrasileira está em todo o ambiente, diz Alexandre Severo Mendes, 34, sócio-fundador. “Existe uma demanda do paciente que quer ser atendido por nós e do profissional que busca ser acolhido no trabalho”, afirma.
Os primeiros atendimentos da Ayo foram feitos em um espaço sublocado já com os equipamentos necessários. Com o aumento do número de pacientes, os sócios investiram o lucro para comprar equipamentos e mudar a clínica para um espaço maior. Neste ano, expandiram para atendimento médico.
A Ayo conta com sete dentistas, cinco médicos, um psicólogo e um nutricionista. Além de acolher o paciente negro, que pode vir de um histórico precarizado de acesso à saúde bucal, o espaço visa a segurança dos profissionais.
Todos são bem-vindos, diz Alexandre, mas quem procura o atendimento já sabe que a clínica não aceitará nenhum tipo de conduta racista.
Fonte: Folha