Produtor de 20% do açúcar orgânico do mundo afirma que empresas e governos são ‘verdes’ apenas na fachada
Nos anos de 1980, o agrônomo Leontino Balbo foi chamado de maluco pelos vizinhos quando anunciou que não usaria defensivos químicos ou queimaria a cana na produção da Usina São Francisco, em Sertãozinho (SP). Agora, ele e seus negócios são referência global em sustentabilidade.
Seus 20 mil hectares de canaviais certificados são responsáveis pela produção de 20% do açúcar orgânico comercializada no mundo. A marca Native coleciona certificações e prêmios. A ONU a incluiu na lista dos 29 negócios mais sustentáveis do planeta.
Recentemente, a Fundação Ellen MacArthur, que atua para acelerar a transição rumo a uma economia circular, apontou o projeto de Balbo como o mais bem-sucedido em agricultura regenerativa em larga escala.
Como a produção não usa químicos, o canavial virou uma espécie de reserva. Desde 2002, a Embrapa monitora a fauna local. Foram identificadas 340 espécies de mamíferos, aves, répteis e anfíbios, sendo que 122 são consideradas raras, como onça-parda, tamanduá-bandeira, lobo-guará, e 49 estão ameaçadas de extinção.
Mas Balbo se declara preocupado. Na sua avaliação, a pressão das mudanças climáticas não é levada a sério. Há muito marketing e pouca ação.
“A gente precisa parar de fingir. O greenwashing [lavagem verde] está institucionalizado, no Brasil e no mundo, dentro de empresas e governos”, afirma ele. “É decepcionante o comportamento em relação a produtos sustentáveis.”
O mais preocupante, diz ele, é a resistência generalizada para abandonar o atual modelo agrícola. “Esse modelo está deixando a produção e a comida mais caras‘, diz. “Você precisa de recursos cada vez mais sofisticados e onerosos para ter o mesmo resultado.”
A sustentabilidade entrou na moda. É mais fácil trabalhar com agricultura orgânica? É muito difícil mudar o modelo. Nos últimos 50 anos, a agricultura foi estruturada para atender agendas financeiras corporativas —de fabricantes de equipamentos, fornecedores de insumos, notadamente os que nos causam dependência. Com isso, você repete a compra e garante a continuidade dos negócios. Essa agenda não está aí para atender a necessidade do agricultor, do consumidor, do planeta ou das futuras gerações.
Mas como funciona esse modelo? Na década de 50, um alemão radicado nos Estados Unidos idealizou uma tipo de agricultura que foi chamada de revolução verde e preconizava quatro vetores.
Uso de defensivo e fertilizantes químicos. Alto grau de mecanização, e as máquinas ajudam muito. Melhoramento genético, que deu uma enorme contribuição à produtividade. Não estou falando de manipulação genética, mas de pegar uma laranja, cruzar com outra e conseguir uma terceira melhor.
Também incluiu o uso de produtos químicos customizados. Com um único produto, feito em larga escala, a um custo fixo baixo, a empresa atende 500 tipos de culturas. Depois que passa o tempo de payback [retorno do investimento], o custo é marginal, e ele fica muito acessível, como o famoso Roundup, um dessecante, e o Imidan, um inseticida.
No entanto, não se computa o efeito colateral do uso desse pacote.
Esse pacote, todos dizem, levou a um salto na produtividade e evitou a fome. Qual é o efeito colateral? Deixe eu explicar. O pulo do gato na agricultura é o solo. Muitos sistemas tradicionais foram capazes de manter por milênios a bioestrutura do solo. E o que é esse negócio?
Na terra existem bactérias, alguns líquens e pequenos insetos, que você só vê de lupa, chamados colêmbolos. Eles têm a capacidade de produzir uma cola proteica que une as partículas do solo. As três principais são saibro, argila e areia. Com isso, se formam pelotinhas, que chamamos de grumos, e eles estruturam o solo. Pode chover a vontade, não descola.
O pacote da revolução verde encontrou os solos estruturados. A cola estava lá. E a validade dela é longa, de 60 a 80 anos. Por muitas décadas, esse solo estruturado respondeu bem à aplicação ao pacote, e tivemos uma aumento exponencial das produtividade.
Mas os insumos foram matando as bactérias e insetos, esterilizaram o solo. Quando chove, não tem espaço poroso, a água escorre e causa erosão. Nos Estados Unidos, o Ministério do Interior tem interditado fazendas onde o solo pulverizou.
Tem mais. As maioria das plantas tira o oxigênio da raiz, não das folhas. Então, as mesmas empresas que venderam esse pacote agora oferecem uma planta transgênica para resolver esse problema —atuam na consequência. A verdade é que as lavouras, para manter ou ter um pouco mais de produtividade, estão exigindo recursos cada vez maiores.
Isso que o sr. descreve tem alguma relação com o aumento de preço na agricultura e da comida? Sim. Esse modelo está deixando a produção e a comida mais caras. Você precisa de recursos cada vez mais sofisticados e onerosos para ter o mesmo resultado.
Veja bem, tem muita coisa boa na agricultura de precisão. Mas ela deve ser um complemento, não pode ser imprescindível. O recurso básico é o solo, e agricultor deveria estar trabalhando para manter as suas qualidades naturais.
Tem outro problema. Adubos ácidos também prejudicam o solo. Eu vi a ministra da Agricultura [Tereza Cristina] fazer o papel dela. Correu para o Canadá para pedir adubo. Mas de que adubo estamos falando?
Tem dois deles, ureia e cloreto de potássio, que causaram alvoroço entre vocês da imprensa. Eles são feitos a partir de recursos finitos, que exigem toneladas de combustíveis fósseis para serem retirados de minas, transportados por caminhões e navios antes de chegarem às fazendas. Enfim, pagamos em dólar para emitir mais gás carbônico e —essa você não sabia— para causar desequilíbrio nas plantas.
Esses adubos químicos causam um desequilíbrio fisiológico e fazem a planta transpirar uma substância que atrai de duas a três vezes mais pragas e doenças do que se você usar adubos naturais. Ou seja, demandam mais herbicidas e inseticidas.
Aí vem o pior. Esses adubos também acidificam o solo. No Centro Oeste, usam tanta ureia e cloreto de potássio que o solo precisa de três vezes mais calcário para neutralizar a acidez do solo. No ritmo atual, nossas jazidas de calcário não duram 50 anos. Nossos filhos vão ver o calcário acabar porque usamos o fertilizante errado. Essa agricultura é sustentável?
Imagino, então, que o sr. tenha sugestões de alternativas a tudo isso. Tenho um monte, você pode escrever aí, e ninguém vai se interessar.
O sr. não está com uma visão um tanto pessimista justamente no momento em que governos e empresas no mundo todo estão mais atuantes em relação a uma agenda verde, por assim dizer? A gente precisa parar de fingir. O greenwashing está institucionalizado, no Brasil e no mundo, dentro de empresas e governos.
É decepcionante o comportamento em relação a produtos sustentáveis. A gente escuta demais, ‘isso é muito importante, nós temos uma agenda ESG, mas tem um assunto aqui mais urgente para tratar antes’. Tenho dúvidas se esse ESG é sério.
Empresas como Native e Natura têm dificuldade de capturar nos seus negócios o resultado da contribuição que dão para a sociedade ao investirem pesado para serem o mais sustentável possível.
Enquanto isso, há alguns dias, todo mundo comemorou o início da exploração de um novo poço da Petrobras. Como pode? As ações tinham que cair. Ela está fazendo um mal para o mundo. Vai emitir mais gás de efeito estufa É péssimo e ninguém questiona.
Quem sai perdendo? O consumidor, quem faz direito e as futuras gerações. Por que a conta já chegou. Secas, incêndios, geadas, inundações.
Mas as fortes alterações do clima estão fazendo todo mundo perder. Nem isso serve de alerta? Em função do modelo que está aí, poucos têm a noção de que fazem parte disso. No setor financeiro, por exemplo, quando avaliam um projeto, sempre vem a pergunta: qual é a taxa interna de retorno, a TIR? A TIR é puramente financeira. Eu pergunto, mas qual é a TIR da água, da biodiversidade, do solo?
O setor financeiro precisa criar modelos para lidar com a mudança. A transição para a economia mais verde, de verdade, vai demandar capital paciente. Mas hoje setor financeiro cobra os mesmos juros de quem emite e de quem neutraliza emissões.
Outro dado. O Brasil vai consumir, aproximadamente, 10,2 milhões de toneladas de açúcar de cana. Mais ou menos 4,2 milhões de toneladas é consumo direto, vendido em pacotinhos no supermercado. Outros 6 milhões de toneladas vão para uso industrial.
Sabe quanto açúcar orgânico eu vendo para uso industrial no Brasil? Vendo 4.000 toneladas, 0,066% do total. Quando a gente oferece o açúcar orgânico para as grandes marcas de alimentos no Brasil, eles pegam uma cruz para se protegerem. As grandes marcas não se interessam pelo açúcar orgânico apesar de todos os atributos de sustentabilidade.
Nem as grandes, que agora anunciam alimentos naturais? Não. O mercado global de açúcar convencional é de 190 milhões de toneladas. O de açúcar orgânico é de 600 mil toneladas. Representa 0,4% comparado ao açúcar convencional. Se as indústrias tivessem interesse genuíno já não era para estar em ao menos em 5%?
Essas grandes empresas criaram um grupo chamado SAI, Sustainable Agriculture Initiative [Iniciativa para uma agricultura sustentável, numa tradução livre]. As 40 maiores indústrias de alimentos do mundo fazem parte dela. Eu fui convidado, há uns 8 anos para fazer uma apresentação em um evento delas. Na véspera, nós recebemos o comunicado que tínhamos acabados de nos tornar a primeira usina de cana do mundo a receber a certificação Rainforest Alliance. Contei para todo mundo ali.
Várias indústrias de alimentos divulgaram que gostariam de ter açúcar com ela. Tivemos um trabalhão para obtê-la. Eu decidi falar sobre ela na minha apresentação, mas na hora não deixaram. Só puder falar cinco minutos.
Me convidaram para ir no segundo evento, e tive a garantia de que poderia fazer uma palestra. Eu passei dois dias ouvindo painéis. Só falaram de digitalização na agricultura. Vários integrantes eram da indústria de máquinas. Um dos focos era o uso do blockchain para multiplicar a coleta de informação das fazendas. Em nenhuma momento, eu ouvi a palavra solo, e o tema do evento era agricultura sustentável
Sabe o que essas empresas de alimentos fazem? Montam um ONG, que é sustentada pelo lucro do negócio delas, que não é tão sustentável assim, e essa ONG vai lá na África, apoiar um projeto de agricultura familiar. Eu quero ver sustentabilidade com o coração do negócio, na cadeia de valor dessas empresas.
A União Europeia tem sido muito ativa na questão ambiental. Qual a sua avaliação? Eu fui convidado para falar em um evento do Parlamento Europeu. Era um fórum sobre o futuro da agricultura, lá em Bruxelas. Está na internet. Meus colegas de painel eram Kofi Annan, que já faleceu, e o professor Allan Savory, autoridade em estudos para reverter a desertificação.
Acabou o evento, à noite, a gente foi jantar. Na mesa estavam também os chefes das divisões de Alfândega e de Meio Ambiente da Comunidade Europeia, são cargos que equivalem ao de ministros. Detalhei melhor o nosso trabalho, a questão da regeneração do solo, da biodiversidade, dos bichos que voltaram para canavial.
Sugeri que avaliassem baixar o imposto de importação para equilibrar o jogo de quem dá esse tipo de contribuição no Brasil, e a resposta foi que o tema é muito delicado.
Para você ter uma ideia, hoje, a gente vende uma tonelada de açúcar orgânico para Europa por US$ 660 [cerca de R$ 3.350], e paga US$ 540 [R$ 2.740] de imposto para entrar lá.
Ficam apontando o dedo para o Brasil, dizendo ‘vocês estão desmatando e acabando com a floresta’, e cobram esse imposto de importação de um açúcar orgânico? Cadê o incentivo, o sinal de boa vontade, quando vão passar do discurso para a ação?
Na produção, emitimos 120 kg (quilos) de gás de efeito estufa por tonelada de açúcar, coloco no navio, no caminhão até fábricas na Europa, e emito mais 350 Kg, mas quando a cana cresce, ela tira 1.500 kg por tonelada. Somos um ralo de carbono. Enquanto isso, o açúcar de beterraba deles emite 880 kg por tonelada de açúcar produzido, e não retira nada, porque queimam óleo.
Não é para ficar irritado? A União Europeia não faz nada para criar uma distinção. Fiz uma sugestão parecida no Brasil e também não deu em nada.
Como assim? Falei com governadores, prefeitos, ministros que podem usar a política fiscal para penalizar quem degrada e compensar quem preservar. Impostos diferentes. A política fiscal é a arma que os líderes têm para resolver a questão da sustentabilidade de uma vez. Pergunta se alguém escutou.
Por isso eu questiono, a quem interessa a sustentabilidade? Qual seria a perda de grandes multinacionais e em quanto cairia a arrecadação de tributos se a gente reduzisse a compra desses insumos importados, ditos tão importantes, e passássemos, por exemplo, a reciclar lixo e esgoto, que não tem valor nenhum?
Eu tenho contato com um pesquisador da Singularity University, e ele confirmou que no nosso lixo e no nosso esgoto têm o dobro do nitrogênio que é aplicado na agricultura. Se a gente tratar o esgoto, separar o lixo orgânico, fizer compostagem, e trazer de volta para campo, diminuímos nossa dependência de adubo importado em no mínimo 60%.
Sabe qual vai ser a primeira desculpa dos órgãos envolvidos? Vão dizer que vai dar um problema sanitário e pode contaminar o solo. Mentira. Testei em solos degradados de uma fazenda de 5 mil hectares que arrendamos. Depois de oito anos, o resultado é fantástico.
Também dizem que é fácil fazer tudo o que fazemos porque a cana é um capim. Eu testei com soja e milho. O resultado é o mesmo. Mas a quem interessa?
Leontino Balbo Junior, 62
Engenheiro-agrônomo, pela Universidade Estadual Paulista de Jaboticabal (SP), é diretor das usinas São Francisco e Santo Antônio, em Sertãozinho (SP), presidente e fundador da marca de produtos orgânicos Native e palestrante sobre temas de agricultura sustentável
Fonte: Folha