Há uma máxima nos negócios que indica como chave para o sucesso a capacidade de perceber para onde o mundo se dirige e chegar lá primeiro. São poucos os setores que fogem à regra. Em geral, as novidades movem a sociedade, e o velho tende sempre a perecer. No mundo da música não é diferente. O próximo novo hit é a grande centelha de um mercado que vive de fenômenos que nascem do dia para a noite e são substituídos na mesma velocidade. Desde 2020, o aplicativo de vídeos TikTok vem tendo um crescimento exponencial no número de usuários, auxiliado pela pandemia e pela busca de internautas por entretenimento. De lá para cá, a plataforma aos poucos se coloca como o grande player que define com assertividade quem vai ser o novo artista queridinho das paradas — mesmo que o músico em questão tenha estourado décadas atrás.
As músicas mais populares hoje, com grande frequência, são as que foram abraçadas pelos usuários do TikTok em coreografias, correntes e desafios. Um bom exemplo foi a ascensão do single Dreams, do Fleetwood Mac, à posição 21 da revista americana Billboard Hot 100 depois de um skatista e criador de conteúdo ter publicado um vídeo cômico dublando a música lançada há 40 anos. Rapidamente as gravadoras e os artistas incluíram planos de marketing específicos para o TikTok, juntamente com a criação de coreografias para a comunidade “tiktoker” replicar ou versos que podem viralizar. O pós-viral também é levado em consideração. A rapper americana Doja Cat, depois de ter sua música Say So popularizada na plataforma, criou o videoclipe oficial da canção com a coreografia que os usuários criaram para o single.
Doja Cat, que já garantiu oito músicas virais na plataforma — seis têm, no mínimo, 1 milhão de replicações cada uma —, se vale de uma receita que traduz bem como funciona o TikTok: letras bem pronunciadas e repetitivas, fáceis de serem entendidas pelo público, até por aqueles que não falam inglês. As expressões e danças feitas nos vídeos devem traduzir aquilo que está sendo dito, usando principalmente as mãos e ângulos da cintura para cima. Outros artistas, quando não emplacam naturalmente como Doja Cat, forçam as dancinhas publicando compilados das produções dos fãs com sua música até que aquilo se torne de alguma forma um viral. O sucesso é igualmente rentável.
Do outro lado da ponta, Roberta Guimarães, head de conteúdo musical do TikTok Brasil, afirma que a plataforma trabalha diariamente com as gravadoras, distribuidoras e artistas independentes, informando-os sobre movimentos e tendências no TikTok, compartilhando as melhores práticas, oferecendo suporte e identificando criadores de conteúdo que possam trabalhar em ações com artistas ou para determinada canção.
“Como o TikTok é uma plataforma de vídeos, é natural que a música seja uma de suas linguagens mais essenciais. Mas, ainda mais do que isso, a música é uma parte fundamental do DNA criativo do TikTok”, afirma Guimarães. “Muitas vezes uma música começa com uma trend que acaba evoluindo para outra. Essa é uma resposta natural da plataforma e da importância de nossa comunidade no resultado. Todo mundo acha que um artista ou o TikTok predeterminam uma coreografia, uma brincadeira ou um tipo específico de conteúdo, mas a verdade é que é sempre uma resposta de nossos criadores ao comportamento da nossa audiência, a uma determinada trend ou música.”
A plataforma controlada pela ByteDance foi, em quatro anos, de um ambiente nebuloso para os direitos autorais das músicas para um dos principais geradores de renda do setor. De início, o aplicativo chinês não tinha garantia de que os ganhos da canção seriam revertidos para o artista, especialmente aqueles de outro país. Os áudios, portanto, poderiam não ter o nome da música ou do artista, e milhares de versões do mesmo som eram transmitidas na plataforma. Isso mudou depois de acordos feitos com publicadoras, que atuam na cobrança e no controle dos direitos dos artistas e compositores e hoje são parceiros do app na divisão dos rendimentos. Hoje um algoritmo do serviço é capaz de identificar o autor original da canção, ainda que circulem edições e alterações na qualidade do áudio original.
No Brasil, para fortalecer ainda mais a relação com a indústria, o TikTok e o Ecad anunciaram em julho do ano passado um contrato para o pagamento de direitos autorais, garantindo uma nova fonte de receita para os músicos. Junto com isso, em fevereiro deste ano, a plataforma incluiu uma licença de publicação musical com a Associação Brasileira de Música e Artes (Abramus). Dessa forma, estabelece-se uma relação de confiança com os artistas musicais independentes que, em início da carreira, atuam apenas por lançamentos via streamings.
A força do novo
As novidades na música, muitas surgidas no TikTok, representam quase metade de toda a indústria
? 75% dos usuários do TikTok dizem usar a plataforma para descobrir novas músicas
? 175 canções listadas entre as mais ouvidas no app foram à lista Billboard Hot 100, dos EUA, em 2021
? 9,8 bilhões de dólares foi a quantia movimentada por cantores estreantes em 2020
? 43% foi o que o valor acima representou na receita do mercado de música
ESTRELAS DIGITAIS
Fenômenos da geração Z sabem como agradar seu público. Enquanto os mais velhos podem ser motivo de piadas por não entender os memes da geração digital, aqueles nascidos a partir de meados dos anos 1990 sabem exatamente a língua que precisam falar — tanto na música quanto em suas contas nas redes sociais. Lil Nas X, cantor do hit Old Town Road, tem muito a agradecer ao TikTok pelo sucesso de sua música. A mistura de rap e country foi inicialmente lançada de forma independente no final de 2018, mas viralizou na rede social cerca de um ano depois. “Promovi a música como um meme por meses, até que ela viralizou e se tornou algo muito maior”, disse o artista ao jornal The New York Times em 2019. A moda pegou de vez. Em uma das trends mais famosas, quem aparece no vídeo “some” com sua roupa comum e volta vestido de cowboy, com chapéu e tudo, quando Nas vai de uma rima para o som caipira no refrão.
A brincadeira que virou a vida do jovem americano de cabeça para baixo exemplifica a guinada que a indústria da música deu com o streaming. Se antes a produção musical envolvia o lançamento de CDs, videoclipes e DVDs de shows ao vivo (confira no quadro ao lado), Nas ficou quase cinco meses seguidos em primeiro no Top Hot 100 da Billboard com uma música que usou uma batida pronta e comprada em um site de free lancers para produtores musicais. De meme, a música acabou se transformando em um videoclipe de 900 milhões de visualizações no YouTube, rendeu dois prêmios Grammy e garantiu uma carreira para Lil Nas X.
Para Cristiane Simões, diretora de marketing e promoção na Sony Music Brasil, o aplicativo de vídeos curtos é uma ferramenta-chave para divulgar conteúdo, que normalmente envolve ações com influenciadores. “Sempre apresentamos o plano para o TikTok antes, para juntos criarmos cases de mais sucesso”, conta. O objetivo é que os vídeos emitam certa naturalidade, o que faz com que eles se misturem com mais facilidade ao resto da página “Para Você”, o feed dos usuários do app. Tanto Nas quanto Doja usam o TikTok para divulgar conteúdos diversos. O ponto não é só distribuir as músicas, mas participar do aplicativo como qualquer usuário, que replica memes e aprende as danças virais. O resultado é extremamente positivo: os artistas têm mais de 925 milhões e 175 milhões de curtidas, respectivamente, e todos os seus vídeos passam de milhões de visualizações.
Além de alavancar carreiras, o TikTok é um ótimo termômetro do que o público pode gostar — e uma espécie de laboratório musical para as gravadoras. Os usuários podem publicar vídeos cantando e ser descobertos, mas o que mais tende a acontecer é o contrário: as gravadoras “plantam” um artista já assinado, que ainda não é conhecido, para postar vídeos no TikTok e parecer que ganhou seu público de forma orgânica.
Os industry plants (literalmente “plantas da indústria”) podem aparecer em vídeos cantando sozinhos em seu quarto, mas, nos bastidores, têm uma grande empresa puxando as cordas para garantir seguidores, publicidade e fama. Em julho de 2021, por exemplo, a jovem Taylor Gayle postou um vídeo seu cantando em resposta a uma sugestão nos comentários: “Você pode escrever uma música de término usando as letras do alfabeto?”, sugeriu a conta @nancy_berman. Gayle, que também é seu nome artístico, viralizou com sua reply cantando o que seria a música abcde f u (um trocadilho com “fuck you”, em inglês).
O sucesso foi tanto que mais de seis versões da música já foram lançadas, acumulando 60 milhões de streams no Spotify. Porém, não demorou para que o suposto hit orgânico fosse desvendado: uma usuária do TikTok viu que quem tinha feito o comentário era, na verdade, uma gerente de marketing digital da Atlantic Records, e o vídeo viral foi feito quase um ano depois de a cantora ser contratada pela gravadora.
Mas a artificialidade nem sempre causa estranhamento no público. É o caso da atriz e cantora Olivia Rodrigo, que faz parte do casting da Disney. Como a companhia tem tradição em lançar um sucesso teen de tempos em tempos, vide os casos de Selena Gomes e Demi Lovato, o público não estranhou ao ver um nome novo que já estreou com disco, videoclipes bem produzidos e shows ao vivo com grande produção. Olivia, de 18 anos, emendou quatro músicas entre as top 10 do ranking da Billboard. Todas fizeram sucesso antes mesmo de entrar em trends do TikTok, mas sem dúvida ganharam ainda mais força quando foram parar no aplicativo.
Esses exemplos não querem dizer que não existam histórias de artistas que tiveram somente e puramente sorte no TikTok. A cantora Marina Sena, por exemplo, não fez nada para que Por Supuesto virasse um hit do app. “Do nada alguém fez um vídeo com a música, e aí todo mundo começou a fazer. Eu não tinha feito o movimento, sabe? Foi realmente muito espontâneo”, disse Sena em entrevista à EXAME no final do ano passado. O áudio oficial tem mais de 250.000 replicações no app e, no Spotify, quase 60 milhões. O sucesso da música impactou diretamente no primeiro álbum solo da artista, cujas faixas principais têm no mínimo 2 milhões de plays cada uma.
O mesmo aconteceu com o rapper FBC e o beatmaker Vhoor: Baile, o álbum da dupla, viralizou no ano passado graças ao Se Tá Solteira, hit que remete aos bailes funk dos anos 2000. A música é uma das maiores apostas para o Carnaval de 2022, mas seu sucesso não veio tão fácil quanto o de Por Supuesto, de Marina Sena. FBC, ou Fabrício Soares, disse à EXAME que “ficou correndo atrás” de influenciadores para que a música viralizasse nas redes. “Paguei um grupo de meninas que dançam twerk, tá ligado? Pedi para alguns amigos fazerem uma dança e postarem”, disse Soares, citando ajuda da atriz Maisa Silva e da própria Sena.
“A ideia que eu passava era sempre bater a mão na câmera. Antes de a música ser feita ela já tinha esse propósito de ser trabalhada no TikTok.” São quatro batidas até o refrão. Quem grava o vídeo bate a mão na tela do celular em sincronia e, ao final, aparece posando enquanto FBC canta “se tá solteira, vamo ficar de casal”. Simples, mas eficaz. “Hoje não há como lançar um trabalho sem ter um trechozinho de 1 minuto que alguém vai bater a mão na cabeça e fazer uma dancinha.” Ao ser questionado se tinha mais algum comentário que queria deixar registrado na entrevista, o músico fez um pedido: “Se puder, fala para as pessoas seguirem minhas redes sociais”.
100 ANOS DE SOM
Como a indústria fonográfica evoluiu no último século
? ERA ANALÓGICA
O início de tudo. Antes da digitalização, o lucro das músicas estava diretamente relacionado às mais tocadas na rádio e ao número de vendas.
Rádio (1920): Notícias, jogos de futebol e anúncios do governo eram narrados através das caixas de som e, para muitos, foi a primeira forma de escutar os artistas da época, que aproveitavam o meio de comunicação para distribuir suas canções.
Discos de vinil (1950): Os LPs mudaram a forma de consumir música com seu som de qualidade e gravação de dois lados. No Brasil, suas vendas só baixaram com o crescimento dos CDs quase 40 anos depois — o formato foi de 28,4 milhões de vendas em 1992 para 10 milhões em 1995
? ERA DIGITAL
A música passa a acompanhar as pessoas a todo momento, mas o acesso à internet torna a pirataria uma prática comum e que afeta diretamente os bolsos da indústria fonográfica.
CDs (1980): Entre sua estreia em 1987 com o álbum Garota de Ipanema e a chegada dos MP3s dez anos depois, os compact discs tiveram cerca de 106,8 milhões de cópias vendidas por aqui, de acordo com a Pro-Música Brasil (PMB).
MP3 (1995): A indústria fonográfica mudou para sempre com os arquivos digitais, que tornaram a pirataria uma prática comum. Só no primeiro semestre de 2001, estima-se que 50% do mercado musical era pirata.
Streaming (2010): A popularização das plataformas de música Spotify, Deezer e YouTube correspondeu diretamente ao crescimento da banda larga no Brasil — e ao avanço dos smartphones e outros dispositivos no mundo.
TikTok (2020): O aplicativo de vídeos curtos tem como maior diferencial sua ferramenta de replicação de áudio. Assim, usuários podem ter seu som reutilizado por qualquer um — e artistas criam danças, refrões cativantes e apostam no algoritmo da plataforma para que sua música seja a viral da vez.
Fonte: Exame