Depois de um pré-carnaval para lá de quente, que movimentou mais de R$ 32 bilhões em ofertas de ações, essa próxima janela de ofertas iniciais de ações (IPOs) na B3 — com balanços de 2020 fechados — começou dando susto. Houve algumas desistências de levar adiante operações, como foi o caso da LG Informática, e ajustes nas expectativas de preços. O principal sinal veio com a redução na faixa de preço da Dasa, que era uma das operações mais aguardadas da lista de espera atual.
Em entrevista, Fabio Nazari, sócio líder do BTG Pactual (do mesmo grupo que controla a EXAME) para mercado de capitais em renda variável, explica que se trata de um desafio conjuntural e não de problemas estruturais. Na avaliação dele, não haverá ruptura ou paralisação da atividade , como a pandemia provocou em 2020, entre o fim de fevereiro e o mês de maio. Transações menores — entre R$ 500 milhões e R$ 1 bilhão — terão mais dificuldade, mas o ambiente estrutural segue positivo.
Tanto é que o movimento para abril promete ser intenso. Foram mais de 20 ofertas até o carnaval deste ano e há mais de 15 previstas apenas para este mês, considerando follow-ons e IPO — e as transações de Dasa e Allied, realizadas na semana passada.
Elas chegam em um momento no qual o fluxo para o mercado de ações está menos intenso do que o verificado no ano passado, o que torna o debate sobre preço mais relevante. Essa é a principal questão.
O investidor — internacional e nacional — está preocupado com o cenário político brasileiro e o risco de interferência nas estatais, e ainda com o quadro macroeconômico e os reflexos da pandemia. Os fundos de ações viveram resgates no começo do ano. O fluxo teve uma leve melhora, mas o acumulado desse começo de 2021 ainda está negativo em R$ 9,5 bilhões para as carteiras dedicadas à bolsa, conforme dados da Anbima.
Nazari estima que até o fim deste ano, entre 70 e 75 novas companhias cheguem à B3. “Eu continuo vendo um ano recorde.” Em volume, prefere não fazer projeções, mas espera ainda muitas transações para acontecer. O número pode variar se houver mudança muito significativa (mais) no fluxo do dinheiro, mas não acredita em piora expressiva. O que talvez não aconteça mais, segundo ele, é o que houve em janeiro e fevereiro: muitas operações, todas com sucesso e praticamente todas dentro da faixa esperada de preço.
Para o ele, que também já viveu o boom do mercado de 2004 a 2008, o ambiente está completamente diferente daquele período. E o sucesso das operações também está e estará cada vez mais ligado ao tempo que as companhias dedicam para educação do investidor e preparo. Por isso, recomenda que as companhias invistam nessa relação com antecedência. “Não tem mais aquela coisa de tirar operação da prateleira e colocar no colo do investidor, mesmo com toda vontade dele de diversificar.”
O EXAME IN já compilou as aberturas de capital desde o início de 2019. Mais de 50 empresas listaram ações nesse período, até agora. Juntas, elas valem atualmente perto de R$ 370 bilhões, ou quase 8% de toda a capitalização da bolsa hoje, que está em torno de R$ 5 trilhões.
Confira agora, os principais trechos da conversa com Nazari:
O que aconteceu com as ofertas dessa segunda janela de 2021?
A cronologia dos eventos aqui é importante. Pouco antes do Carnaval, o investidor já estava cansado. Foram muitas ofertas, num espaço muito curto de tempo para digerir, um movimento recorde. Logo após o feriado, houve a troca na presidência da Petrobras, o que trouxe uma preocupação a respeito de interferência política. Junto com isso, teve o aumento da taxa de juros aqui no Brasil e a consolidação da perspectiva de um aumento na taxa de juros dos Estados Unidos. O mercado está passando por uma certa fadiga.
O que é essa fadiga?
É uma fadiga ampla. Num ambiente mais frágil de mercado, como esse que descrevi, quando o mercado cai, mesmo que não seja muito, as novas operações começam a competir com as empresas já listadas. As coisas conhecidas, mais fáceis de decidir e analisar, ficam mais baratas. Junto com isso, houve resgate nos fundos de ações nesse começo de ano. O gestor olha para dentro do seu portfólio e procura ser mais conservador. Prefere deixar recursos em ativos com mais liquidez e, em alguns casos, até reserva caixa mesmo.
Mas há um cansaço de novas empresas?
Não é isso exatamente. O investidor sempre acha bom e apoia que tenha mais empresas. Mas há momentos em que precisa privilegiar a liquidez. E quando a gente olha o tráfego, faltam braços para avaliar tudo. Uma gestora com R$ 1 bilhão pode ter dez funcionários. Uma casa com R$ 30 bilhões, vai ter 15 analistas. Não vai ter tantos mais assim, quanto tem a mais de dinheiro. E não é humanamente possível olhar tudo. Comprar em IPO exige um trabalho maior do que comprar o que já se conhece.
E essa volatilidade de mercado atrapalha?
Claro. Quando a gente olha o índice, se ilude. Lá dentro a coisa está borbulhando. Também é preciso considerar que toda companhia nova, de um IPO, é um ativo não indexado. Isto é: não é Índice Bovespa, não é MSCI, não é nenhum indicador que o investidor possa se apegar para acompanhar mercado. É uma ação “non core business” nesse começo. Então, nessas horas, quando a roseira chacoalha, é normal o investidor se apegar ao que conhece e vender o que é novo. Queira ou não, o IPO é sempre um corpo estranho na carteira.
Foi isso que ocorreu com as empresas de tecnologia?
Em alguma medida sim. Mas não só. O Brasil acompanhou o movimento de correção lá de fora desse segmento, muito afetado pela perspectiva de aumento na taxa de juros americana de longo prazo. Isso concorre diretamente com as ações de empresas de tecnologia, em que o lucro está no futuro. Houve o que a gente chama de “sell off” de techs. E não foram só as novatas que sofreram, não. Magazine Luiza passou por isso, Stone, Linx, Totvs. Não escapou ninguém. Junto, houve um ânimo com a vacina e com as empesas conhecidas. O investidor migrou para a “old economy”, tudo aquilo que sofreu pelo isolamento: educação, varejo e tudo relacionado à atividade econômica, incluindo minério, e bancos, por causa da expectativa de juros.
Esse começo de ano foi puxado, então, para a indústria de investimentos?
Essa composição de coisas trouxe um arraso nos portfólios. Principalmente nos últimos anos, o local é muito mais presente nas ofertas que os estrangeiros. E isso foi ainda mais forte nesse começo de ano, com muita oferta tech de empresa menor, que as casas internacionais não entram por questão de liquidez. Brinco que o dinheiro só entra pela porta que consegue sair. Então, as gestoras nacionais estavam carregadas de techs e IPOs nesse começo de ano, que caíram. Somado aos resgates e às perdas com as estatais, foi um estrago.
Então, no fundo é essa soma de eventos que está prejudicando as ofertas nesse momento?
Sim. É conjuntural, não é estrutural. Abril começou com várias operações e esse quadro do investidor machucado. Essa soma de coisas fez o apetite por ativos novos diminuir bastante nessas semanas.
E o varejo, o pequeno investidor, tem papel nisso?
Tem na medida em que investe nos fundos, que são os compradores e formadores de preço dos IPOs. E também tem papel com o dia seguinte. No começo do ano, pode reparar que houve muita ação puxada na onda do evento “GameStop” e na revolução das sardinhas. O que não tinha fundamento, devolveu todo o ganho depois.
Você viveu aquele boom do mercado de 2004 a 2008. Agora é tudo muito diferente, não?
Muito. É outro mercado. Antes, o estrangeiro assumia em média 75% das ofertas. Agora, está invertido. O mercado brasileiro ganhou muita profundidade e muita especialização. Hoje em dia, existe procura pelo risco dentro do Brasil e isso não existia antes. Houve a democratização do acesso aos fundos de investimento com as plataformas. A gente vê cada dia surgir uma gestora nova de recursos. Hoje, o esforço de apresentação para os investidores, o road show, é muito mais concentrado em Brasil. Era o contrário antes. Junto com o isso, o investidor estrangeiro continua interessado por Brasil, mas está mais tímido.
Essa profundidade também está por trás do aumento do número de companhias interessadas em abrir capital?
Sim. O nível de taxa de juros atual não só traz investidor para bolsa. Vai além disso. O juro baixo permitiu que as companhias se desalavancassem e pensassem em crescimento, em acessar mercado e investir. Além disso, já está chegando na bolsa essa geração de novos empresários, mais acostumados ao fundos de private equity e venture capital, que encaram a possibilidade de uma diluição [redução da participação no negócio pela emissão de ações para levantar dinheiro novo] de uma forma mais tranquila.
O valor das empresas está mais interessante também.
Sim. Aqui tem a questão dos múltiplos. A bolsa fica cara ou barata por esses indicadores, como 10 vezes o lucro, 20 vezes o lucro [quanto mais alto o múltiplo, mais cara a ação, tecnicamente]. Então, se o lucro sobe porque a empresa cresce e também porque gera mais caixa ao pagar menos dívida, o múltiplo cai e a ação volta a ficar mais barata, mais interessante e atrair mais capital. Essa condição de expansão de múltiplo não existia no Brasil. Com as coisas retornando a alguma normalidade, essa situação vai ficar mais clara. Por isso, volto a falar, o conjuntural poderia estar melhor, mas o estrutural está ótimo.
Por isso faz anos que o mercado está ativo, por essa melhora?
Vamos voltar para 2016. Nós não paramos de fazer operações desde então, quando o mercado estava em 37 mil pontos. De lá para cá, só paramos na greve dos caminhoneiros e agora, na pandemia, um por um período. Lá atrás, o mercado serviu para ajudar as empresas a se desalavancarem. Ano passado, é preciso falar também, houve o medo da pandemia e muitos follow-nos foram de empresas pegando caixa para lidar com a situação.
O que mais mudou?
O que eu tenho falado demais é sobre o tempo de preparação e o tráfego de ofertas. Tenho batido muito nessa tecla nas conversas com clientes. O ideal é gastar muito mais tempo para criar relação com investidor. Mesmo mais profundo e especializado, o mercado local ainda não tem condições de absorver 40 empresas em uma janela de 35 a 50 dias úteis. É muita coisa. Não tem mais aquela coisa de tirar operação da prateleira e colocar no colo do investidor, mesmo com toda vontade dele de diversificar.
O empresário mudou ou ele continua sempre querendo vender caro?
Sempre haverá uma queda de braço entre investidores e empresários. Mas o empresário está mais consciente de que o investidor precisa ganhar também. Que ele pode fazer uma oferta menor agora e depois fazer outra. Não precisa ser uma só. E, nesses anos todos de trabalho, eu não conheço um empresário que chegou para mim e disse: “Eu me arrependi de abrir capital”. Conheço o contrário, quem não veio pela discussão de preço e depois se lamentou porque perdeu competitividade.
Sobre as techs, há (já) um esgotamento com essas empresas? O investidor desistiu delas?
Não. De jeito nenhum. Até porque tecnologia é muito amplo. Tem proptech, fintech, edutech, health tech. Tem um monte de tech. O único setor que passou mesmo por uma fadiga setorial foi imobiliário. Mas mesmo esse tem muitos subsegmentos parar vir ainda, com logística e galpões, que virão na esteira do crescimento do e-commerce. Por enquanto, o que temos é mais dificuldade para ofertas menores, por tudo isso que comentei. O que talvez nao aconteça mais é uma janela como a de janeiro e fevereiro. Todas as ofertas saíram e com preço dentro do sugerido, mesmo para operações menores.
Fonte: Exame