É um dos encontros mais importantes da história.
Seu tema central? O que os governos do mundo farão para evitar que as mudanças climáticas produzam seus efeitos mais catastróficos.
Espera-se que cerca de 25 mil pessoas participem da cúpula sobre mudança climática em Glasgow, na Escócia, que acontece entre 31 de outubro e 12 de novembro.
A reunião anual reúne as partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCC), e a de Glasgow é a 26ª Conferência das Partes ou COP.
Não são apenas convocados os governos de mais de 190 países. Além das negociações oficiais, também acontecem exposições e debates nos quais participam milhares de representantes de empresas e ONGs.
A cúpula deste ano ocorre quando a humanidade enfrenta uma encruzilhada que não poderia ser mais clara.
As mudanças climáticas estão se intensificando e já afetam todas as regiões do planeta, de acordo com o relatório de agosto do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unias (ONU), o IPCC.
Inundações, ondas de calor, furacões e incêndios florestais estão se tornando mais frequentes e mais intensos devido às mudanças climáticas, dizem os cientistas.
“Hoje nosso futuro e presente estão em risco. Esta crise nos atingiu, e as vidas das comunidades mais vulneráveis estão em jogo”, disse a estudante mexicana de engenharia ambiental Alejandra Gálvez, que participará da COP26 como membro do movimento Viernes por el Futuro México.
Confira abaixo as questões-chave que estão sobre a mesa na crucial COP26.
1) Por que 1,5 é o número mais importante
O principal objetivo é evitar que o aquecimento global ultrapasse um aumento de 1,5°C em relação ao século 19. E isso requer cortes drásticos e urgentes nas emissões de dióxido de carbono (CO2), o principal gás de efeito estufa liberado pela queima de combustíveis fósseis.
A temperatura do planeta já subiu 1,1ºC em média, de acordo com o relatório de agosto do IPCC.
Foi nos Acordos de Paris, adotados na COP21 em 2015, que grande parte dos países do planeta se comprometeram a “manter o aumento da temperatura média global bem abaixo de 2°C em relação aos níveis pré-industriais, e a dar continuidade aos esforços para limitar esse aumento de temperatura a 1,5°C”.
“Há uma diferença notável entre os riscos com um aumento de 1,5°C versus um aumento de 2°C”, diz Michael Oppenheimer, especialista em mudanças climáticas da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, e autor e revisor de vários relatórios do IPCC.
O cientista destacou que, embora cada aumento adicional no aquecimento cause mais danos e mais perdas de vidas, “quando ultrapassamos um aumento de 1,5°C, esses efeitos começarão a ocorrer de forma não linear”.
“Eventos como calor extremo, danos de ciclones tropicais, inundações por chuvas mais intensas, todos esses tipos de impactos danosos e letais tornam-se cada vez mais comuns e mais intensos à medida que o aquecimento excede 1,5°C.”
Oppenheimer é um dos autores do relatório do IPCC “Warming by 1.5 degrees” (Aquecimento de 1,5 graus, em tradução livre), que deixa clara a grande diferença de riscos entre um aumento de 1,5°C e 2°C.
Com um aumento de 2°C, por exemplo, os recifes de coral, um dos ecossistemas mais importantes do planeta, praticamente desaparecem.
O que deve ser feito para evitar ultrapassar 1,5°C?
O IPCC falou sobre isso categoricamente.
Para que a meta de 1,5°C seja atingida, as emissões de CO2 devem ser reduzidas em 45% até 2030. E, até 2050, devem chegar a zero líquido (ou seja, o CO2 emitido deve ser compensado por mecanismos que absorvem gás, como plantio de árvores ou tecnologias que capturam o gás e o armazenam no subsolo).
No entanto, ao contrário do que é exigido, as emissões de gases de efeito estufa caminham para um aumento até o fim desta década de 16% em relação a 2010, segundo a ONU.
E os atuais planos globais de produção de petróleo, gás e carvão excedem em mais do que duas vezes o nível necessário para ficar dentro de 1,5°C.
Isso apesar da grande queda nos preços das energias renováveis. O custo dos painéis solares, por exemplo, caiu 82% entre 2010 e 2019, segundo relatório recente.
Sem mudanças drásticas nas emissões, o mundo caminha para um aumento de temperatura de pelo menos 2,7°C até o final do século, alerta a ONU.
2) Com que cada país se compromete?
De acordo com o Acordo de Paris de 2015, os países devem anunciar novas e mais ambiciosas metas de redução de emissões a cada cinco anos.
A primeira vez que isso vai acontecer é na COP26, que estava programada para 2020 e foi adiada por conta da pandemia de covid-19.
Essas metas são conhecidas no jargão climático como “Contribuições Nacionalmente Determinadas” ou NDCs, na sigla em inglês.
Muitos países anunciaram planos nos últimos anos para alcançar emissões “líquidas zero” até 2050 (Estados Unidos, Reino Unido) ou 2060 (China).
“A COP26 deve chegar a acordos para uma grande redução nas emissões globais até 2030”, diz Carlos Nobre, pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.
A cúpula deve obter “não apenas promessas para 2050, mas compromissos de redução rápida de emissões com planos de transição concretos para economias de baixo carbono, algo que já é tecnologicamente viável, mas está sendo implementado muito lentamente globalmente nos setores de energia, agricultura e infraestrutura, entre outros”.
O cientista brasileiro destacou ainda que “uma das ações urgentes é eliminar os enormes subsídios que a economia atual dá a setores altamente poluentes, como os mais de US$ 1 trilhão (R$ 5,7 trilhões) por ano em subsídios aos combustíveis fósseis, que são as maiores fontes de emissões”.
Para o cientista britânico James Dyke, “as políticas de zero líquido podem ser uma armadilha perigosa”.
“Essas políticas podem permitir uma mentalidade imprudente de ‘queime agora, pague depois’, diz Dyke, diretor do Instituto de Sistemas Globais da Universidade de Exeter, na Inglaterra, e autor de Fogo, Tempestade, Inundação: A Violência da Mudança Climática.
A tecnologia para extrair dióxido de carbono da atmosfera ainda é muito limitada, alerta o cientista.
Assim, as promessas de zero líquido “podem dar aos políticos e às empresas um pretexto”.
“Em vez de introduzir cortes rápidos no uso de combustíveis fósseis, elas invocam um futuro otimista no qual é possível retirar com segurança as emissões de carbono”.
3) A reivindicação de justiça climática e a promessa de US$ 100 bilhões
Os países desenvolvidos se comprometeram em 2009 a contribuir com US$ 100 bilhões a cada ano a partir de 2020, a fim de ajudar outras nações na transição para economias de baixo carbono e na adaptação às mudanças climáticas. O compromisso foi posteriormente estendido até 2025.
Mas os recursos aportados em 2020 não atingiram essa meta. E o governo britânico anunciou dias antes da cúpula de Glasgow que é “improvável” que essa meta seja alcançada em 2021, embora esteja “confiante” de que será alcançada em 2023.
Os países em desenvolvimento exigem que a promessa seja cumprida.
“Nem todos contribuíram para as emissões da mesma forma”, disse Saleemal Huq, diretor do Centro Internacional para Mudança Climática e Desenvolvimento em Bangladesh.
“Os países ricos se beneficiaram com a Revolução Industrial. Mas as principais vítimas são os pobres em países como o meu, Bangladesh, cujas emissões são minúsculas em comparação. É realmente uma questão moral”, acrescentou Huq.
Anaid Velasco é gerente de pesquisa do Centro Mexicano de Derecho Ambiental A.C. (CEMDA), uma das ONGs que estará presente na COP26.
“Para a América Latina, o cumprimento dessa promessa de US$ 100 bilhões é de grande relevância, considerando que somos uma região altamente vulnerável aos efeitos das mudanças climáticas, com perdas e danos consideráveis.”
“Basta lembrar que o recente relatório do IPCC identificou um aumento considerável da temperatura nesta região, maior até do que em outras regiões do planeta, o que contribui para mais secas, maior probabilidade de inundações e elevação do nível do mar.”
Para Velasco, ter os fundos prometidos é “uma ação alinhada com a responsabilidade dos países que geram maiores emissões em comparação com nações que têm menos responsabilidade (exceto México e Brasil) mas mais impactos derivados das mudanças climáticas. De uma ação de justiça climática.”
Outros pontos polêmicos
Outra questão financeira não resolvida é a dos mercados de carbono, que permitiria aos países com emissões abaixo de suas metas vender créditos para outras nações.
A implementação deste mercado é controversa. Muitos temem que os países ricos evitem reduções em seus próprios países comprando créditos que não contribuem o suficiente para a queda global das emissões.
Outra disputa importante é que, além da ajuda para a adaptação, o Acordo de Paris reconheceu em termos gerais “a importância de lidar com perdas e danos” causados pelas mudanças climáticas.
Os países ricos recusam qualquer sugestão de compensação. Mas é isso que grupos como a Associação de Países Insulares (AOSIS) pedem há anos, incluindo ilhas para as quais a elevação do nível do mar é uma ameaça existencial.
José Villalobos, estudante de Psicologia e ativista do clima e LGBTQIAP+, também participará da cúpula como parte do movimento Viernes por el Futuro México.
“Sou do sul do México e vi e vivi a tragédia migratória entre a fronteira do México e da Guatemala. Temos que levantar nossa voz ainda mais alto do que já fazemos todos os dias durante a COP26 para exigir ação, e que os países do norte global se comprometam por danos e com reparações. Acredito que nossa própria existência e segurança estão em jogo.”
4) Desafios e o papel da China
O alto custo das viagens e a falta de vacinas em muitos países podem fazer com que a cúpula de Glasgow não tenha a representação necessária dos países mais pobres.
Mas o maior obstáculo para um acordo eficaz são as relações entre os principais participantes internacionais, especialmente a China e os Estados Unidos, que respondem por quase 40% das atuais emissões globais de CO2.
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, não conseguiu obter a aprovação do Congresso para sua ambiciosa iniciativa de eletricidade renovável. Isso enfraquece, segundo analistas, sua capacidade de pressionar outros países para a redução das emissões.
Por outro lado, a relação entre Estados Unidos e China, os dois maiores poluidores do mundo, está abalada, especialmente após a criação do AUKUS, o pacto militar anunciado em setembro do qual fazem parte também Reino Unido e Austrália. O objetivo, segundo analistas, é fazer frente aos avanços da China.
China é vital.
“A menos que a China descarbonize sua economia, não vamos derrotar a mudança climática”, diz David Tyfield, professor do Centro Ambiental da Universidade Lancaster, na Inglaterra, e autor de Liberalismo 2.0 e a ascensão da China: Crise Global, Inovação e Mobilidade Urbana.
“As emissões da China dominam os números globais, com 27% do total em 2019, e os Estados Unidos em segundo lugar, com 11%. Pela primeira vez, as emissões chinesas ultrapassaram todas as emissões combinadas dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico)”, acrescenta Tyfield.
Pequim pode ter outro grande impacto na luta contra as mudanças climáticas, segundo o especialista.
“A China é há muito tempo a ‘fábrica do mundo’ e desempenha um papel central nos circuitos de produção das economias globalmente. Isso significa que os esforços de descarbonização da China terão um impacto desproporcional em indústrias inteiras e em todas as economias nacionais associadas a essas elas.”
Mas Tyfield alerta que as emissões chinesas não devem servir para fazer outros países abdicarem de sua responsabilidade e demonizar o gigante asiático.
“Os países da OCDE somados têm um percentual semelhante ao da China. E os países ricos não têm, como a China, o problema de se desenvolver e se descarbonizar simultaneamente.”
Embora a China seja o maior emissor de CO2 hoje, o quadro é diferente quando se trata de emissões historicamente acumuladas, um ponto importante para as reivindicações de justiça climática.
O CO2 emitido há séculos continua a aquecer o planeta hoje. Ao considerar as emissões históricas, os Estados Unidos, com 20%, superam a China, que tem 11%, de acordo com uma pesquisa do centro de estudos internacional Carbon Brief.
E o Brasil não está muito atrás.
Apesar de o país chegar à COP26 com a promessa de enfatizar o argumento de que nações desenvolvidas poluíram muito mais ao longo da história para enriquecer e devem, portanto, compensar aquelas em desenvolvimento pela proteção de suas florestas, uma nova pesquisa sobre o acumulado histórico de emissões de gás carbônico classifica o Brasil entre os maiores poluidores do mundo.
No estudo, que leva em consideração pela primeira vez o desmatamento ao contabilizar a liberação de CO2, o Brasil aparece em quarto lugar no ranking de emissões desde 1850, depois de Estados Unidos, China e Rússia.
O que se espera da cúpula?
“Gostaria de ver planos para ‘perdas e danos’ que tenham uma perspectiva de direitos humanos e justiça”, diz Alejandra Gálvez.
“Quero ver planos e estratégias concretas de financiamento climático para danos e reparos, quero saber se existe um plano de descarbonização e quero ver planos de como os combustíveis fósseis serão mantidos no solo. Tudo isso de uma forma que ninguém fique para trás”, diz José Villalobos.
Anaid Velasco afirma que diante do “estado de emergência que vive a humanidade e o planeta”, os países “deveriam apresentar compromissos de redução de emissões muito mais ambiciosos (o que implica “desligar” projetos baseados em fontes fósseis) e uma maior admissão de responsabilidade pelas perdas e danos que as nações mais vulneráveis estão experimentando.”
Para Carlos Nobre, “é preciso criar as condições para uma rápida transição do atual sistema econômico global para uma economia inovadora de baixo carbono”.
E é hora de ir além das promessas.
“Por exemplo, o Brasil hoje tem emissões per capita de 9,5 toneladas de CO2 e metas de redução de cerca de 5 toneladas até 2030. Mas as emissões do Brasil vêm crescendo há muitos anos, e foi um dos poucos países cujas emissões aumentaram durante a pandemia de 2020 devido ao desmatamento na Amazônia e às emissões da agricultura”, acrescenta Nobre.
“Os jovens têm razão em não aceitar os compromissos urgentemente necessários que a maioria dos países promete nas COPs, mas os ignora quase totalmente na hora de implementá-los”, conclui.
Fonte: BBC News Brasil