“É surreal”, diz o CEO da Via Varejo
Em entrevista exclusiva ao NeoFeed, Roberto Fulcherberguer fala sobre os resultados do quarto trimestre, a virada digital da empresa, o impacto do coronavírus na operação e os desafios que virão pela frente
Roberto Fulcherberguer, CEO da Via Varejo, estava no meio de uma virada digital quando foi pego por uma virada de mão que fez o Brasil e a empresa mergulharem em uma tormenta: a crise do coronavírus.
A recomendação de isolamento social por parte da Organização Mundial da Saúde (OMS), seguida por estados e municípios, obrigou a companhia a fechar temporariamente as suas 1.071 lojas espalhadas pelo Brasil.
O impacto tem sido devastador. Repentinamente, a companhia viu 70% do seu faturamento desaparecer. A maior parte de seus quase 45 mil funcionários está em casa. A outra parte está concentrada nas operações online.
Aliás, os resultados da companhia no quarto trimestre já mostram que a virada digital já estava bem encaminhada. O volume bruto de mercadorias (GMV) no e-commerce saltou 34,9%, saindo de R$ 1,68 bilhão, no último trimestre de 2018, para R$ 2,27 bilhões no último trimestre de 2019.
A companhia também reverteu um prejuízo de R$ 282 milhões para um lucro líquido operacional de R$ 78 milhões no período. “É excelente o que fizemos no quarto trimestre. Mostra que temos outra companhia na mão”, diz Fulcherberguer, em entrevista exclusiva ao NeoFeed.
No ano, o resultado foi de uma receita bruta de R$ 29,84 bilhões e um prejuízo de R$ 479 milhões. Isso porque a companhia deu baixa em R$ 1,3 bilhão referentes a uma investigação que descobriu fraudes contábeis relativas à gestão anterior.
Agora, com a crise do coronavírus, a Via Varejo se vê questionada por conta de seu poder de fogo para aguentar o período com um caixa apertado. “Ninguém nesse País tem caixa para ficar três meses sem faturar”, diz Fulcherberguer.
Na entrevista que segue, ele fala sobre a operação de guerra montada pela empresa, os resultados financeiros e como está o caixa da companhia. Ele também detalha o que foi feito na operação online e como a Via Varejo vai enfrentar a crise.
“Temos ótimas relações com a indústria, com o setor financeiro e a empresa está muito bem preparada para se adaptar e passar por esse momento”, diz Fulcherberguer. Acompanhe:
Como está sendo o seu dia-a-dia com essa questão do coronavírus?
Estamos com um cenário bem adverso. Tenho 30 anos de varejo, passei por diversas crises, mas essa é diferente de tudo. E é diferente de uma crise setorial, onde algo não está funcionando, essa é uma crise que impacta todo mundo.
E como tem impactado a Via Varejo?
Desde sábado, estamos com 100% das lojas fechadas no Brasil inteiro. Até sábado estávamos com 65% das lojas fechadas, mas no sábado, ao meio dia, tomamos a decisão de fechar todas porque o clima nas lojas estava péssimo e não tinha como ficar operando. A gente já tinha tomado a medida protetiva, já tínhamos isolado as pessoas do grupo de risco, mas chegou num ponto em que ficou insustentável manter as lojas abertas mesmo com as pessoas fora do grupo de risco. Da noite para o dia, perdemos 70% do nosso faturamento, que são as lojas físicas. É algo surreal. Estamos tendo que remontar todo o nosso dia-a-dia e reestruturar o modus operandi da empresa.
O que está sendo feito para isso?
A gente preparou toda a nossa logística para que ela tenha segurança de operar. Preparamos o time, a forma como opera e mexemos nos turnos para minimizar quaisquer riscos. Na entrada dos nossos Centros de Distribuição (CDs), tem uma equipe médica medindo a temperatura dos nossos funcionários, fazendo questionário para ver se tem alguma possibilidade de algum sintoma e, tendo, já isolamos o funcionário e a parte da equipe que estava com ele. Estamos tomando medidas protetivas para que os CDs continuem operando e mantendo o online atuante. Mas a gente já começa a ver uma outra preocupação na população.
“Estamos tendo que remontar todo o nosso dia-a-dia e reestruturar o modus operandi da empresa”
Qual?
Até todo mundo ir para casa a preocupação era: ‘eu preciso me isolar do vírus’. Agora, a preocupação é ‘será que vou ter emprego?’. Esse não é o nosso caso, as pessoas estão em casa e não há nenhum plano do nosso lado com relação a posição de emprego das pessoas. Temos uma grande relação com a classe C e começamos a ver a preocupação das pessoas sobre até onde vai a empregabilidade.
O efeito disso é terrível…
Isso começa a criar uma crise de confiança. Para que o consumo exista, a menor preocupação é se tem ou não dinheiro. Porque aí tem várias ferramentas de crédito que facilitam o acesso. Mas a crise de confiança é o que, de fato, rompe a barreira de consumir ou não consumir. Estamos com um online muito ativo, vendendo bem, mas estamos vendo um início de preocupação dos consumidores que é preocupante no médio prazo.
Como minimizar isso?
Tomamos a decisão de postergar a parcela do carnê dos clientes. A que vencia em abril jogamos para o final do carnê do cliente, como se fosse a última parcela do carnê. Não estarei com a loja aberta para receber a parcela e eu entendo que, nesse momento, não faz sentido fazer o consumidor sair de casa para nos pagar, mesmo que seja numa lotérica. Fazia todo o sentido dar esse fôlego extra para o consumidor nesse momento e assim o fizemos.
“A crise de confiança é o que, de fato, rompe a barreira de consumir ou não consumir”
E se esse isolamento durar mais do que o esperado?
Aí é sistêmico o problema. Caso isso aconteça, teremos intervenções via “ene” medidas provisórias. Tudo se posterga, eu não vou receber e ninguém vai receber. A crise é diferente porque é para todo mundo. Estou vendo o governo se movimentando para entender como fazer caso isso aconteça por um tempo maior. Vai ter que baixar uma regra e pular tudo por “xis” dias para frente.
Você está dizendo isenções de impostos e outras medidas como essas?
Sim. O governo está adotando algumas flexibilizações em relação a folha de pagamento, impostos e encargos que vêm junto com a folha. Várias outras iniciativas estão sendo estudadas em termos de tributos e postergação. Como a crise é para todos, estão todos imbuídos em como solucionar a crise e em como postergar aquilo que tem que postergar. Não é a empresa A, B ou C que vai ter problema, é todo mundo. Estou vendo toda a iniciativa privada e o setor financeiro com essa preocupação.
A Via Varejo emprega 45 mil pessoas. A empresa pretende negociar redução salarial ou entrar em algum acordo com os funcionários?
Até que a gente tenha uma clareza de qual é a duração desse negócio não vamos tomar nenhuma medida. Mas se esse negócio perdurar vai ter que ter alguma medida protetiva por parte do governo. Ninguém está preparado para ficar três meses sem faturar.
“Ninguém está preparado para ficar três meses sem faturar”
Mas a empresa ainda tem a operação online…
Sim, como estamos alavancando o online, esse número vai ficar menor. Mas sou um dos privilegiados, tem gente que zerou o faturamento.
Vocês estão conversando com os fornecedores para também postergar pagamentos?
Ainda não iniciamos essas conversas e, no curto prazo, não temos problemas. Estamos esperando um pouco mais para entender o desenrolar desse negócio. Temos uma relação de mais de 20 anos com três grandes bancos. Então, tem coisas que não tem nem que ter conversa. Não está precisando nem a gente ligar, há uma compreensão geral de que as coisas pararam.
A empresa está buscando novas linhas de crédito?
Não estamos buscando nada adicional. As conversas que estamos tendo com os bancos são para linhas que já temos. Estamos tendo conversas tranquilas, nenhum problema na mesa, e elas são mais proativas do lado dos bancos. Com a indústria, se tivermos de ter essas conversas, teremos. Mas não é algo para o curtíssimo prazo.
Você falou do online, que a Via Varejo está dando um grande gás. O que está sendo feito nessa área?
Aí já entra nos nossos resultados do quarto trimestre. Assumimos essa empresa em junho do ano passado. Tivemos “ene” problemas durante o terceiro trimestre inteiro, em que tivemos de parar para corrigir várias coisas, até chegarmos na Black Friday. Ali chegamos inteiros e preparados para “rampar” o crescimento. Desde então, a gente vem extremamente ativo no online. O nosso número de crescimento é extremamente forte e nosso número de usuários ativos cresceu muito. Saímos desse quarto trimestre com a empresa muito mais redonda e preparada para esse cenário. A empresa está muito mais ativa e com um nível de conversão maior.
Quantas pessoas baixaram o app da Via Varejo?
Chegamos a 7 milhões de usuários ativos por mês. Em setembro, estávamos com 1,5 milhão. É um crescimento exponencial. Crescemos fortemente o nosso engajamento, a nossa mídia social está muito forte, estamos usando de maneira muito mais ativa e assertiva a nossa base de mais de 85 milhões de clientes. Fizemos todo o saneamento do estoque no quarto trimestre do ano anterior. Crescemos fortemente a margem, mesmo saneando estoque. Coloquei mais de R$ 500 milhões de estoque que não era bom. Ou seja, se eu tivesse feito um trimestre normal, com o estoque recorrente da empresa, provavelmente estaria acima dessa margem de lucro bruto que atingimos. Mesmo queimando estoque, mesmo fazendo uma Black Friday extremamente agressiva, a gente atingiu 30,2% de margem bruta operacional. Estamos com outra empresa na mão. Tem muita coisa por fazer, sem dúvida, mas a gente já transformou e tem uma empresa pujante na mão.
“Chegamos a 7 milhões de usuários ativos por mês. Em setembro, estávamos com 1,5 milhão. É um crescimento exponencial”
Mas o resultado anual não foi bom…
Na verdade, estou separando a empresa em dois mundos. Estávamos com uma investigação rodando e tem esse R$ 1,3 bilhão, de coisas não recorrentes, que entram no resultado da companhia. Tem esse tiro que acontece no quarto trimestre, onde reconheço tudo isso. Mas a empresa recorrente é essa que estou te falando a partir do quarto trimestre.
O tiro que você se refere é a fraude contábil (o rombo de R$ 1,3 bilhão aconteceu na gestão anterior) que foi encontrada?
Sim, foi isso o que impactou no resultado. Senão teríamos tido R$ 78 milhões de lucro líquido, 8% de Ebitda. São números que tínhamos expectativa de chegar entre o primeiro trimestre e segundo trimestre de 2020.
Mas vocês vão acionar o GPA (antigo controlador da Via Varejo) na justiça?
Isso está nas mãos do nosso jurídico e dos nossos escritórios para avaliar essa situação.
Muita gente no mercado tem dúvida se a Via Varejo sobrevive os próximos meses com o caixa que tem hoje. O que você diz sobre isso?
Ninguém nesse País tem caixa para ficar três meses sem faturar. Não somos nós que temos problemas, ninguém tem caixa. Mesmo empresas capitalizadas têm um estoque dentro de casa que precisa ser pago. Não é um problema que a Via Varejo tem, e eu não tenho problema. Se eu pegar o que tenho de caixa, mais o que tenho de recebíveis, mais o que tenho de estoque… O caixa está formado em linhas diferentes, mas está aqui. Não tenho um problema iminente de curtíssimo prazo. No fechamento do fim do ano, temos mais de R$ 2 bilhões de caixa. Não é desprezível. E, tem o seguinte, toda a nossa conversa com os bancos está sendo de colocar isso para frente.
“Não somos nós que temos problemas, ninguém tem caixa. Mesmo empresas capitalizadas têm um estoque dentro de casa que precisa ser pago”
Em último caso, você vai recorrer aos bancos?
Sim, há uma proatividade por parte dos bancos. E a gente impacta as indústrias e 85 milhões de clientes que se relacionam com a gente. O que está acontecendo hoje não é um problema da Via Varejo, é um problema do mercado inteiro.
A Via Varejo concluiu recentemente a compra da fintech banQi. Você se arrepende por conta do momento?
Não, de jeito nenhum. Essa crise vai passar. Várias coisas de capex a gente parou e outras não. Eu não parei de mexer na minha infra de tecnologia. Queremos sair muito mais forte do que entramos nesse negócio. O que vai determinar quem sai dessa crise melhor ou pior não é quem tem mais caixa ou é mais inteligente, é quem tem a maior capacidade de se adaptar ao momento. Assumimos uma empresa que saía do ar a cada hora. A nossa capacidade de adaptação é incrível.
A Via Varejo tinha divulgado um guidance de abrir 80 lojas no ano. Os planos continuam?
Estamos parando agora e olhando tudo. Tudo passa agora por entender até quando vai esse mode em que o País está hoje. Mas, de ontem para hoje, vi uma grande mudança de linha de pensamento.
Qual mudança?
Até ontem todo mundo dizia: ‘fica em casa por tempo indeterminado’. Começo a ver agora governos municipais, estaduais e o federal também, repensando se essa é a melhor estratégia. Tem que ter, sem dúvida nenhuma, preocupação com os grupos de risco, mas começo a ver os governos mais sensíveis. Se ficar tudo parado por vários meses, aí teremos de ter uma atuação muito forte do governo federal de como é que a gente protege todo o ecossistema. Estamos vendo outros países também tomando outras medidas, começando a avaliar que o risco de todo mundo ficar em casa e a economia inteira travada seja grande demais e talvez seja melhor manter em casa protegido o grupo de risco.
O Reino Unido fez esse lockdown vertical, fugiu do controle e acabou estipulando um lockdown horizontal de três semanas…
As autoridades estão aí e vão tomar os caminhos necessários para proteger o País. Mas, de ontem para cá, começo a ver um sinal diferente. Não estou dizendo que vai ser mais rápido ou menos rápido, mas começam discussões que não estavam na mesa.
“Essa é a hora de todos se unirem por uma causa comum e a causa comum chama-se Brasil”
Você acha que tem de ter um prazo?
Vai ter “ene” variáveis na mesa e o governo vai avaliar o que está na mesa. Começou a se olhar de maneira mais forte para a variável econômica também. Tem muita gente no trabalho informal no País, tem muita gente que trabalha hoje para garantir o sustento de amanhã. Vai ter que gerar soluções para essas pessoas.
É visível que todos os poderes estão batendo cabeça na resolução dos problemas causados pelo coronavírus. O que você acha sobre isso?
Acho que essa é a hora em que o Brasil inteiro tem de se unir para cuidar da sociedade e da economia do País. É o que precisamos. A classe empresarial, a classe política e os meios de comunicação têm de se unir por um objetivo comum porque é um problema comum para todos.
Qual é a sua avaliação sobre o discurso do presidente Bolsonaro na terça-feira?
A minha avaliação é a que te falei. Essa é a hora de todos se unirem por uma causa comum e a causa comum chama-se Brasil.
Foto: Roberto Fulcherberguer, CEO da Via Varejo