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Defectibilidade de regras tributárias em tempos de crise

Artigo de Jules Queiroz

No Direito Tributário, medidas excepcionais têm o hábito de se tornarem ordinárias e permanentes

No contexto da severa crise sanitária e econômica causada pela pandemia da Covid-19, um juiz federal de Brasília autorizou o distrito Federal a, isoladamente e sem deliberação do Conselho Nacional de Política Fazendária, isentar de ICMS as vendas de álcool em gel. A fundamentação da decisão tem dois pontos: (i) o incentivo não tem o potencial de gerar a guerra fiscal; (ii) o Distrito Federal está em calamidade pública em virtude da pandemia. Na prática, portanto, o juiz afastou a eficácia das regras previstas no art. 155, § 2º, “g”, da Constituição, e na Lei Complementar no 24, de 1975.

Não se discute o mérito da intenção do Distrito Federal de promover o combate à pandemia – o que vem fazendo de forma ativa – nem do magistrado que deferiu a liminar em contribuir com essa intenção. O ponto deste ensaio é um só: é preciso ser cauteloso com o afastamento de regras em tempos de crise, porque ele pode se espraiar para além desta.

Evidentemente, as regras jurídicas foram feitas para serem observadas. Mas há casos excepcionais em que elas podem ser afastadas. Quem inaugurou o conceito de defectibilidade de regras (defeasibility of rules) foi Herbert Hart1. Em síntese, Hart entende que toda regra tem implícitas cláusulas de exceção, de maneira que podem deixar de ser aplicadas nessas circunstâncias excepcionais. No Direito brasileiro, Humberto Ávila2 também destaca que regras podem ser afastadas em circunstâncias extraordinárias, quando confrontarem princípios de maior ou igual hierarquia, com base no princípio da razoabilidade no seu aspecto de equidade.

Todavia, não me parece que a decisão a respeito da isenção preencha esses requisitos. Mas, para os fins da argumentação deste artigo, imaginemos as consequências posteriores da decisão de afastar a eficácia do art. 155, § 2º, “g”, da Constituição, e da Lei Complementar no 24.

A prosperar esse entendimento, a partir de agora teríamos que fazer distinções entre incentivos fiscais que promovem a guerra fiscal e os que não promovem a guerra fiscal. Essa distinção não existe nas dezenas de decisões do Supremo Tribunal Federal sobre o tema3. Dar-se-ia um estímulo aos Estados para editar novas leis de incentivos fiscais à revelia do Confaz, testando os limites da distinção entre as duas espécies. Fazendo-o, enterraríamos a paz pública decorrente da Lei Complementar no 160, de 2017, que se não resolveu definitivamente, pelo menos mitigou os efeitos da guerra fiscal. Paradoxalmente, portanto, por um incentivo que não teria o condão de promove-la, abrir-se-ia um novo capítulo da guerra fiscal do ICMS.

Também há a questão da calamidade: a pandemia do coronavírus sem dúvida é um desastre sanitário e econômico que justifica medidas extremas. Mas medidas francamente inconstitucionais? A obrigação de deliberação conjunta dos Estados e Distrito Federal para conferir incentivos de ICMS deriva do princípio federativo, que é cláusula pétrea (art. 60, § 4º, I). Quais outras garantias do contribuinte e princípios estruturantes estamos dispostos a afastar em prol do combate às calamidades? A própria Constituição prevê um regime de combate a crises que amplia sensivelmente os poderes governamentais: estados de sítio e de defesa, cobrança de empréstimos compulsórios, desapropriações, requisições, etc. É realmente necessário transbordar os limites constitucionais em busca de mais poderes?

Não se pense que o caso do álcool gel é isolado. A Advocacia-Geral da União ajuizou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental com o objetivo de permitir a prorrogação de vigência das medidas provisórias até que seja “normalizado” o funcionamento do Congresso Nacional4. Busca-se, ao fim e ao cabo, ressuscitar o finado decreto-lei. Há discursos pregando tributar lucros e dividendos, grandes fortunas, dentre outras bases. Como essas exações somente poderiam ser cobradas em 2021, seria preciso também afastar a aplicação do princípio da anterioridade para que as medidas tivessem efeito fiscal imediato.

Yuval Noah Harari, em artigo que reflete bastante o espírito do tempo, destaca que medidas temporárias têm o hábito de ultrapassar as emergências que as motivam. Usa como exemplo medidas excepcionais adotadas pelo governo de Israel no estado de emergência decorrente de sua guerra de independência de 1948, que vão desde censura e confisco de terras e regras sobre como fazer pudim. Embora a guerra tenha acabado há tempos, apenas em 2011 o estado de emergência foi encerrado e com ele as medidas excepcionais.

No Direito Tributário isso não é menos verdade. O imposto de renda, por exemplo, foi concebido na Inglaterra e na Alemanha como fonte de renda para os esforços de guerra contra Napoleão5. Nos Estados Unidos, o mesmo imposto foi instituído para gerar receita para a Guerra Civil. Em todos os casos não apenas o imposto veio a se tornar permanente, como hoje é o principal tributo direto das economias contemporâneas.

No Brasil, é lendário o exemplo da Contribuição (outrora imposto) Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF). Criada originalmente em 1994 para ser supostamente temporária, foi renovada sucessivamente até encerrar sua vigência em 2007. A despeito disso, vem sendo sua ressurreição pregada por vários políticos e acadêmicos.

A Desvinculação de Receitas da União (DRU), criada como Fundo Social de Emergência em 1994, também vem sendo prorrogada desde então. Com o desiderato de dar flexibilidade ao orçamento da União, aumentou a dependência desta das contribuições sociais, tornando o sistema tributário mais complexo e de menor qualidade6, bem como degradando a base de incidência de impostos que são repartidos com Estados e Municípios.

A defectibilidade realmente é uma propriedade das regras jurídicas. Mas essa propriedade apenas deve ser utilizada em situações extraordinárias, nos quais a aplicação ordinária das regras gere absurdos. Ocorre que a Constituição brasileira é bem mais analítica e rígida do que suas equivalentes em outros países, notadamente no que tange ao Sistema Tributário. Não por acaso, prevê regras aplicáveis até mesmo a situações de calamidade. Aplicar essas regras expressas é bem mais seguro e produtivo do que afastar as limitações essenciais ao poder do Estado. Não pensemos apenas no desespero de hoje, mas também no projeto de amanhã.

Referências Bibliográficas

1 HART, Herbert L. A. The ascription of responsability and rights. Proceedings of the Aristotelian Society, New Series, Vol. 49 (1948 – 1949), p. 171-194.

2 ÁVILA, Humberto B. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 110-111.

3 Para citar algumas: ADI 3779, Relator(a):  Min. ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 30/08/2019; ADI 5467, Relator(a):  Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 30/08/2019; ADI 2352 MC, Relator(a):  Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 19/12/2000.

4 Que vem funcionando, inclusive de maneira virtual.

5 GROSSFELD, Bernhard e BRYCE, James. “A Brief Comparative History of the Origins of the Income Tax in Great Britain, Germany and the United States”. The American Journal of Tax Policy. Vol. 2, p. 211-251.

6 BORDIN, Luís Carlos Vitali e LAGEMANN, Eugenio. Formação tributária do Brasil: a trajetória da política e da administração tributária. Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatística Sigfried Emanuel Heuser, 2006, p. 73-74.

*Jules Queiroz– doutorando em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, advogado, sócio do Queiroz, Barbosa e Bezerra Advocacia e ex-procurador da Fazenda Nacional. Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público.

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