De patinho feio a estrela do setor na Bolsa, varejista investe em dados e peças “versáteis” atravessar para cenário adverso para o varejo, diz o CEO Paulo Correa
Ao decidir realizar seu IPO no final de 2019, a C&A pôs fim a décadas de mistério. A varejista holandesa, com seu segundo maior mercado no Brasil, era conhecida por manter seus números em sigilo e adotar uma postura discreta – seus executivos raramente apareciam em eventos e evitavam entrevistas.
Após quatro anos e enfrentando uma pandemia que impactou severamente o setor varejista, a empresa emergiu como protagonista no segmento de moda na Bolsa brasileira em 2023, registrando um aumento de mais de 250% nas ações ao longo de um ano desafiador para o setor.
Enquanto concorrentes lidavam com vendas estagnadas e queda na rentabilidade, a C&A apresentou um crescimento de 6,5% nas receitas de vestuário nos primeiros nove meses em comparação com o mesmo período do ano anterior. Além disso, registrou um aumento de 5,6% nas vendas ‘mesmas lojas’, aquelas abertas há mais de 12 meses.
No terceiro trimestre, os resultados foram ainda mais notáveis. Tanto o faturamento quanto as vendas ‘mesmas lojas’ aumentaram mais de 12%, acompanhados por incrementos na margem bruta, que vem crescendo há sete trimestres consecutivos, e na margem EBITDA.
“Ainda não capturamos completamente os impactos dos investimentos que realizamos, e ao mesmo tempo estamos criando novas alavancas para manter esse ritmo no futuro. A jornada apenas começou, e há muito espaço para melhorar em ambas as margens”, afirma o CEO da C&A, Paulo Correa.
Prestes a completar duas décadas na C&A, o executivo, que lidera a empresa há oito anos, destaca que não houve uma solução mágica. A empresa está simplesmente seguindo o plano apresentado no IPO, centrado em quatro pilares: digitalização, recuperação da capacidade de conceder crédito, modernização dos sistemas de distribuição e expansão das lojas.
“Não tivemos sequer um trimestre completo de resultados antes do início da pandemia. Adiamos algumas coisas, ajustamos o ritmo, mas a direção sempre foi a mesma. O mercado não nos dava o benefício da dúvida, em parte devido ao contexto global, mas agora os resultados estão aparecendo”, destaca.
Apesar do aumento superior a três vezes no valor das ações neste ano, as ações da C&A ainda estão sendo negociadas em torno de R$ 7,90, menos da metade do valor de estreia na B3, que foi de R$ 16,50.
A recente performance da empresa é, em grande parte, resultado de sua estratégia de digitalização. O canal digital, que antes do IPO representava apenas 2% das vendas, agora contribui com 16% da receita, abrangendo comércio eletrônico, aplicativo e vendas por WhatsApp.
Além do canal de vendas, o uso de dados permeia toda a estratégia da C&A. A empresa revisou sua estrutura de dados, integrando informações anteriormente separadas, como as do programa de fidelidade C&A e VC, a parceria com o Bradesco em cartões, dados de clientes que compram online e até mesmo quem compra fornecendo apenas o CPF.
“Construímos uma base de dados robusta, organizando todas as informações, o que se tornou um ativo valioso”, destaca Correa.
Esse movimento permitiu maior assertividade no crédito. Em 2021, a C&A adquiriu os direitos de emissão de seus cartões do Bradesco, seu parceiro desde 2009, lançando o C&A Pay, seu cartão de crédito digital.
Com base em sua base de dados, a empresa consegue conceder crédito mais rapidamente, conhecendo o histórico do cliente. A oferta do cartão é feita diretamente no caixa, para clientes que já iriam fazer uma compra utilizando outro método de pagamento. A análise de crédito é realizada instantaneamente, e o crédito é liberado em poucos minutos. Atualmente, 22% das vendas da C&A são realizadas pelo C&A Pay, com uma taxa de inadimplência “em linha com o mercado”, conforme afirma o CEO.
“O que muitos não percebem é que isso é uma trajetória descendente: quando começamos, temos uma taxa de inadimplência maior, que diminui à medida que a carteira atinge a maturidade. O desempenho futuro será melhor do que a situação atual”, afirma.
Outro investimento crucial foi no modelo de distribuição chamado “push and pull”, uma lacuna que a C&A tinha em relação a seus concorrentes. Ao contrário do modelo tradicional, no qual os fabricantes enviam produtos em pacotes fechados para as lojas, no “push and pull” é possível ter uma visão específica sobre quais produtos, considerando cor e tamanho, estão vendendo mais em cada loja e enviá-los de forma personalizada para cada unidade. Isso evita tanto a perda de vendas por falta de produto quanto o acúmulo excessivo de estoque.
“O ‘push and pull’ trouxe muito mais assertividade à distribuição. Começamos a ver algumas aplicações de análise de dados surgindo e pilotos nesse sentido para fazer previsões de demanda mais precisas”, relata Correa.
Atualmente, esse modelo responde por 40% das vendas, atingindo a meta da empresa para este ano, e espera-se que continue avançando.
A disciplina de capital nos últimos anos é um dos pontos mais elogiados pelos investidores. Um gestor que acompanha os papéis destaca: “A empresa sempre foi muito sólida e nunca gastou de forma imprudente. Sabe agir quando as coisas estão difíceis e tem a capacidade de conter investimentos quando necessário”.
Impactada pela pandemia, a empresa intensificou os investimentos em 2021, totalizando R$ 700 milhões, o dobro do período pré-pandêmico. No ano seguinte, com o aumento das taxas de juros, a C&A reduziu o ritmo e cortou sua dívida líquida pela metade, alcançando R$ 601 milhões.
Uma parte significativa do controle de despesas concentrou-se na redução do estoque, visando melhorar o capital de giro. “O caixa é mais valioso do que nunca. Já tínhamos o menor estoque da indústria e estendemos o prazo de pagamento aos fornecedores”, explica Correa.
A redução da taxa Selic e a perspectiva de melhora no cenário macroeconômico em 2024 devem proporcionar um impulso positivo para a empresa, afirma o CEO. Ao mesmo tempo, o crescimento da receita deve resultar em uma alavancagem operacional, aumentando o EBITDA, que ainda está abaixo dos concorrentes.
No entanto, com as taxas de juros ainda elevadas, o executivo não vê espaço para uma expansão agressiva de lojas. Desde 2019, a empresa abriu 50 lojas, muito abaixo das 150 previstas durante o IPO.
“Continuamos enxergando potencial para 100 novas lojas, mas a expansão não é uma prioridade neste momento devido ao retorno limitado no curto prazo”, afirma. Com forte presença no Rio e em São Paulo, bem como no Nordeste, a C&A identifica uma subpenetração em relação aos concorrentes no Centro-Oeste e no Sul.
Enquanto os concorrentes enfrentam a concorrência das plataformas internacionais, como a Shein, a C&A minimiza esse impacto.
“Não sei exatamente quanto essas plataformas estão crescendo. O que sei é que estamos ganhando participação de mercado, apesar delas. Precisamos continuar crescendo e focados em nosso trabalho e evolução”, afirma.
No entanto, ele destaca a necessidade de isonomia tributária. “É uma competição desleal. Ponto. Não tenho problema com a concorrência, desde que haja as mesmas regras para todos.”
Em um mundo onde a moda rápida se torna cada vez mais veloz, a C&A trabalha com um tempo menor entre coleções. O movimento começou em 2018, com o lançamento da Mindset, focada em capturar as tendências de streetwear.
“Propusemos um desafio aos fornecedores: queríamos reduzir o prazo de 120 dias entre a concepção das peças e a chegada delas nas lojas e no site para apenas 30 dias”, conta Correa. O modelo foi bem-sucedido, e agora o modo “Mindset” foi expandido para toda a C&A, com reduções nos prazos, embora em menor proporção, também para as coleções tradicionais.
Ao mesmo tempo, a empresa aposta em peças mais versáteis, adequadas para várias situações de uso, para atender a uma consumidora que vê suas compras como investimentos. “Se a peça é mais atemporal, é possível precificá-la melhor”, destaca. Nas prateleiras e na Bolsa, a C&A aposta no longo prazo.
Fonte: Exame