Técnicos do Ministério da Economia tiveram que tomar decisões ligadas ao Auxílio Brasil, substituto do Bolsa Família, com base em informações incertas e em meio a dúvidas sobre os números do programa.
Documentos obtidos pela Folha por meio da Lei de Acesso à Informação mostram a equipe econômica fazendo análises orçamentárias com simulações de despesas não confirmadas, sem dados claros e com alertas para a falta de fonte de recursos para o programa a partir do ano que vem.
Os documentos obtidos pela reportagem referem-se a um decreto que aumentou o IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) a partir de 20 de setembro para custear parcialmente o Auxílio Brasil em 2021. As informações disponibilizadas mostram como decisões do governo em relação ao tema seguiram adiante mesmo com as incertezas.
Segundo os documentos, estudos internos foram solicitados no mês passado pelo gabinete do ministro Paulo Guedes (Economia), que demandou urgência. As principais análises sobre o plano foram concluídas em menos de dois dias após a requisição e foram encaminhadas à cúpula do ministério em 15 de setembro, na véspera da assinatura do decreto que elevou o IOF.
Em sua análise sobre a medida, a Secretaria de Orçamento Federal (a SOF) se baseou em estimativas próprias acerca dos números do Auxílio Brasil, sem que houvesse uma confirmação dos dados pelo Ministério da Cidadania, responsável pelo programa social.
A própria SOF chamou atenção para a necessidade de um respaldo da outra pasta.
“Os dados relativos ao aumento de beneficiários e dos valores dos benefícios […] deverão ser ratificados pelo Ministério da Cidadania, oportunamente, uma vez que os valores apresentados nesta nota são resultantes de simulação realizada por esta SOF”, diz o texto.
O cálculo respaldou toda a engenharia financeira para bancar o programa neste ano, o que resultou na decretação do aumento do IOF –sem menção nos documentos a qualquer confirmação da Cidadania sobre os dados. No entanto, após o aumento do IOF entrar em vigor, o governo anunciou números diferentes para o Auxílio Brasil, com público maior e benefício mais alto.
Com o programa —que começa a valer no dia 17 de novembro— ainda rodeado de impasses, o Ministério da Economia disse à Folha nas últimas semanas que o IOF pode mudar de destino e ficar para os cofres do Tesouro caso não se consiga implementar o Auxílio Brasil com os valores planejados.
André Luiz Marques, coordenador-executivo do Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper, afirma que as decisões de gestores públicos e privados precisam ser bem fundamentadas, considerando a escassez de recursos.
“Nenhum Estado, empresa ou pessoa tem dinheiro para fazer tudo o que quer”, afirma. “Por isso, fazer as coisas na pressa e na correria, com uma série de inconsistências e imprecisões, é no mínimo irresponsável. No mínimo. Chega a dar vergonha ler esses exemplos”, diz.
Para ele, os cálculos ligados ao programa deveriam estar claros há muito tempo. Há mais de um ano o governo discute um novo programa social e, por questões políticas, decidiu não enfrentar a revisão de outras despesas para inseri-lo no Orçamento.
“Agora vêm as soluções criativas, mexendo nos precatórios [dívidas do Estado cobradas pela Justiça]. É um erro para corrigir outro erro”, diz.
Ainda de acordo com os documentos internos obtidos pela Folha, a Secretaria de Tesouro Nacional também levantou dúvidas sobre os números do programa ao analisar o rascunho da exposição de motivos do decreto (documento que acompanha medidas, trazendo as justificativas para sua criação).
Os técnicos não viram no texto “disponibilização clara” dos valores do programa social e também chamaram atenção para dados destoantes.
“Não restou devidamente evidenciado na EM [exposição de motivos] como se dará essas alocações compensatórias [dos recursos do IOF] nos programas a serem instituídos, bem como se elas serão de fato suficientes para garantir sua neutralidade, seja pela ausência de informações de valores de impactos para alguns programas ali indicados, como já destacado acima, seja pela discrepância de dados informados”, afirmaram os técnicos do Tesouro.
Fazer as coisas na pressa e na correria, com uma série de inconsistências e imprecisões, é no mínimo irresponsável. No mínimo. Chega a dar vergonha ler esses exemplos André Luiz Marques
Coordenador-executivo do Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper
Apesar das dúvidas em suas análises durante a discussão técnica, o Tesouro acabou dando aval à medida fazendo apenas ressalvas. Depois disso, o valor da despesa com o Auxílio Brasil foi inserido na exposição de motivos.
Já os dados apontados como discrepantes pelo Tesouro permaneceram. Eles se referiam à parte da medida que direcionaria recursos para outra iniciativa tomada pelo governo, o subsídio à importação do milho.
As medidas acabaram sendo oficializadas mencionando dois dados –com uma diferença de R$ 11 milhões entre as duas expectativas mecionadas de impacto fiscal para sustentar a compra da commodity.
Leandro Ferreira, presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, afirma que os documentos ligados ao IOF aumentam a lista das falhas do governo em relação ao assunto.
“É um improviso tanto na política social como na administração do Orçamento”, afirma. “Isso decorre do fato de o governo não ter se preparado a tempo para discutir o que sucederia o Bolsa Família. Todo o mundo sabia que isso seria necessário após o auxílio emergencial”, diz.
Ferreira não descarta que o governo vire alvo na Justiça em decorrência do assunto, por interpretar que o Executivo não está cumprindo uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal). Em mandado de injunção neste ano, a corte determinou que o governo regulamente uma renda básica no país a partir de 2022.
Ao longo de todo o processo de elaboração do programa, os técnicos da Economia alertaram que o aumento do IOF em 2021 não garantiria o Auxílio Brasil, pois o programa social geraria impactos fiscais também a partir de 2022, e não havia concretamente um instrumento de financiamento para os anos seguintes.
“[A Secretaria de Orçamento Federal] ressalta que [o decreto], enquanto medida compensatória para o exercício de 2021, de modo a propiciar eventual aumento de despesas do PAB [programa Auxílio Brasil], não garante a sua efetiva implementação, diante dos requisitos que precisam ser cumpridos para viabilizar o novo programa em 2022”, afirmam os técnicos.
O Tesouro também chama atenção para a incerteza. “Ao que parece, há referência de impactos fiscais do citado programa que transcendem a 2021, sendo que a elevação do IOF é circunscrita a fatos geradores do corrente ano, o que nos remete a indagações sobre a forma de compensação dos anos posteriores e a garantia de neutralidade estrita para o alcance das metas fiscais ano a ano”, afirma a análise.
Juliana Damasceno, economista e pesquisadora de finanças públicas do Ibre FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), afirma que o próprio governo não saber qual a fonte de recursos para o programa prejudica a medida.
“É completamente dependente uma coisa da outra. Se você não tem recurso, você não pode garantir uma fonte de custeio. É um princípio básico”, afirma.
Ela afirma que os números ligados ao Auxílio Brasil deveriam estar claros e poderiam ter sido discutidos e lapidados via projeto de lei com o Congresso, caso isso fosse feito com antecedência. Para ela, a ausência de dados dificulta a discussão.
“É extremamente importante que esses cálculos estejam abertos, com a memória de cálculo, para decidir o que vai ser feito em casos de surpresa. Muitas vezes, essa falta de dados está obscurecendo uma informação que pode ser valiosa para a sociedade”, afirma.
Fonte: Folha