A executiva Julia Barroso lidera há pouco mais de um ano a frente que o iFood chama simplesmente de “Fintech”. Um objetivo dessa área é que o consumidor e o entregador tenham um cartão de crédito iFood, para parcelar as compras no aplicativo e fora dele. Julia já atuou na criação do Banco Restaurante, que emprestou R$ 300 milhões a restaurantes parceiros, e do iFood Benefícios, que conta com 600 mil colaboradores. A executiva — engenheira de produção com experiência variada, em organizações como C&A e Kroton — abraça a estratégia da empresa de experimentar muito, em pequena escala e sem demandar muitos recursos. “Testamos coisas malucas o tempo todo, com poucas pessoas, sem gastar um absurdo de dinheiro nem energia demais”, explica. Essa prática também faz com que o time se acostume pequenas frustrações – típicas de qualquer processo inovador.
Época NEGÓCIOS – Trouxemos para você uma pergunta da Ianda Lopes, diretora da GE Renewable Energy: se seus colegas de iFood fossem questionados sobre o seu impacto no trabalho deles, o que você esperaria que eles destacassem como “sua marca”?
Julia Barroso – Gostaria que eles tivessem uma visão de que sou uma pessoa que consegue mobilizar várias áreas, mesmo fora do meu segmento, para entregar resultado. Na minha visão profissional, acredito muito nesse esforço de mobilização e união dos times, com visões e características multidisciplinares, para alcançarmos metas que poderiam parecer distantes. Acredito que eu consiga exercer um papel de catalisador das equipes para entregar resultados.
NEGÓCIOS – Como isso se materializa na área de fintech no iFood?
Julia – Entrei no iFood como entrepreneur in residence [empreendedora interna]. A mensagem (da liderança para mim) era: ‘não sei o que você vai fazer, mas te quero aqui para nos ajudar a inovar e criar negócios que tragam valor para a sociedade e para o iFood.’ Dois meses depois, assumi uma cadeira de fintech. Criamos o Banco do Restaurante para ajudar os nossos parceiros a crescer, acessando crédito mais barato do que a média do mercado. Não existe nenhum banco no Brasil dedicado ao setor.
Outra inovação é o iFood benefícios, que compete com Alelo, Sodexo e VR, players mais tradicionais. Cobramos taxas muito mais baratas do que a média do mercado, trazendo para o colaborador um produto mais flexível e com uma rede de aceitação maior. Queremos trazer mobilidade e transformar esse produto em uma conta digital com cartão de crédito para o assalariado, o PJ e até o executivo de uma grande empresa. Também queremos oferecer crédito para o cliente do iFood. Um cartão com o qual ele possa parcelar, ter cashback ou frete grátis no aplicativo. No futuro, queremos fornecer esse cartão para o entregador.
Fazemos escolhas, é uma batalha depois da outra. Quando tudo isso estiver pronto, começamos a sair do universo iFood para o mercado.
NEGÓCIOS – Essas inovações já deram resultados concretos para empresa?
Julia – Já emprestamos mais de R$ 300 milhões para restaurantes. Temos uma carteira considerável e pretendemos que esse número triplique até março de 2023. Queremos ajudar o restaurante a crescer na cozinha, no offline. No iFood Benefícios, temos mais de 600 mil colaboradores contratados. Devemos estar entre o quarto e quinto maior player de benefícios. Somos ainda pequenos perto dos outros, não chegamos a 2,5% do mercado, mas isso já mostra que o cliente e o RH das empresas estão gostando do nosso produto. Esses resultados nos deixam ainda mais animados para continuar evoluindo e trazendo mais inovação.
NEGÓCIOS – A inovação implica muitos erros. Você pode compartilhar alguns e o que aprendeu com eles?
Julia – Quando lançamos o iFood Benefícios, em dezembro de 2020, no lugar do cartão, o cliente pagava com o QR Code. Foi um desastre. Quando a inovação é muito disruptiva, precisa de um tempo para a sociedade absorver. Se lançássemos hoje, ele teria muito mais sucesso porque as pessoas aprenderam a trabalhar com QR Code nesse meio tempo. Um produto de benefícios está mais voltado para a pessoa que trabalha em fábrica e que não necessariamente está familiarizada com o universo digital. É preciso criar um produto que atenda ao cliente. O índice de satisfação era horrível assim que lançamos: 47. Quando lançamos o cartão, super tradicional, ela saltou para 69. Foi então que decidimos escalar o produto e fazer inovações incrementais.
A inovação precisa sempre ser feita, mas é preciso entender o momento da sociedade para absorver a solução. O próprio iFood é um exemplo disso. Passar a comprar comida pelo celular e mandar entregar é uma mudança de hábito. Quem imaginaria, há alguns anos, que pediríamos comida japonesa em casa? E hoje isso acontece. Precisamos tentar acelerar o processo de inovação, mas também entender e respeitar o movimento natural da sociedade.
NEGÓCIOS – Vocês fazem pesquisas de mercado antes de lançar um produto?
Julia – Olhamos muito para fora do Brasil e fazemos pesquisa de campo. O time viaja uma vez por ano para a China. Mas nada disso nos impede de errar. O ser humano é assim e não somos diferentes por estarmos em uma empresa de tecnologia e que inova: é comum chegarmos cheios de convicções. Foi assim com o QR Code. A vantagem no iFood é poder testar pequeno. Testamos coisas malucas o tempo todo, com poucas pessoas, sem gastar um absurdo de dinheiro nem energia demais. Isso faz com que o time se acostume com a frustração. Esse processo de inovação é frustrante porque erramos muito mais do que acertamos, mas como erramos pequeno, nos damos ao luxo de errar muito. Acertar também é muito bom. Por mais que o benefício não tenha sido exatamente como imaginávamos, ele trouxe várias outras inovações bacanas para o mercado.
NEGÓCIOS – Quais os mecanismos usados pelo iFood para aceitar bem os erros?
Julia – A inovação faz parte dessa cultura da empresa, que estabelece uma meta clara e dá autonomia para aquilo acontecer. Me dizem: você tem que fazer tantos mil usuários, te vira. Me dão esse problema, uma meta agressiva com um prazo curto, e isso faz todo mundo sair desesperado para encontrar uma solução. Segundo, temos núcleos de inovação pura, fora de uma área específica de negócios. São pessoas fazendo pesquisa sobre o que está acontecendo no mundo. Por exemplo, se um aplicativo na China está oferecendo compra coletiva e recebendo pedidos por Whatsapp, colocamos pessoas para testar essas novas teses e ver se funciona no Brasil. Temos em curso cerca de 15 teses novas, fora dessa inovação do dia a dia, sendo testadas. Terceiro, o iFood fomenta muito a educação, não só formal, mas viagens, leituras, webinars… Tudo quanto é tipo de coisa para nos ajudar a abrir a cabeça. Quarta-feira de manhã é o nosso tempo para estudar e nos desenvolver. Ninguém marca reunião nesse período.
NEGÓCIOS – Qual a sua maior ambição quanto à inovação dentro do iFood?
Julia – Meu sonho é não precisarmos mais fazer almoço e que encontremos uma solução muito barata para que as pessoas peçam comida. Brincadeira, mas eu acho que cozinhar deveria ser um hobby e não necessariamente uma obrigação. O prazer da culinária é tão legal, mas quando vira obrigação, perde um pouco do glamour. Como é que a gente deixa a gastronomia essencialmente para os momentos de prazer, de reunião, e não mais para o contexto do dia a dia? Tenho muita vontade de encontrar essa fórmula. De construir preço, logística, as parcerias certas e o modelo certo para mudar esse hábito. Assim, as mulheres, que acabam tendo mais esse papel de cozinhar, poderiam ficar mais livres. O mesmo para as compras de mercado, em que estamos entrando fortemente. Imagina uma pessoa te entregar as compras na porta de casa e todo mundo sair ganhando? Acho que isso tiraria um peso muito grande do dia a dia e permitiria economia de tempo para outras coisas.
NEGÓCIOS – Que valores você busca reverberar como líder?
Julia – Primeiro, o desenvolvimento das pessoas. Um líder tem uma capacidade grande de mexer com as pessoas, tanto na vida pessoal quanto na profissional. Gosto de ajudá-las a fazer coisas que nem elas acreditam ser possível. Gosto de fazê-las se sentirem produtivas e enxergarem o impacto positivo do seu trabalho na sociedade. Já entreguei muita coisa legal, virei VP e quero ajudar outras mulheres a verem que é possível fazer o mesmo. Quero a companhia delas na liderança. Não é fácil: competimos por uma posição alta na pirâmide. É preciso se preparar emocionalmente para essa competição e as mulheres não são tão estimuladas quanto os homens para isso. Mas temos total capacidade para isso.
NEGÓCIOS – Quais são os números do iFood em diversidade?
Julia – Temos hoje 41% de mulheres na liderança e nossa meta é chegar a 50% até o fim de 2023. Temos 27% de mulheres na alta liderança, da diretoria para cima, e a ideia é chegar a 35%. Estamos com 20% de pessoas negras na liderança e temos a meta de 30%. A parcela de pessoas negras no iFood hoje é de 29% e queremos chegar a 40%. Já evoluímos muito nos números e, com essas metas, vamos avançar ainda mais. Estabelecer metas ajuda a abrir a cabeça, pensar sobre o assunto e fazer um esforço para trazer mais currículos diversos para a empresa. Mas não adianta só o iFood ter 50% de mulheres na liderança. Temos que mudar isso como sociedade. Sabemos que quando empresas de tecnologia em evidência, como iFood e Nubank, promovem esse tipo de debate, todo mundo acaba sendo pressionado a fazer isso, então, naturalmente, esse nível vai aumentar não só aqui dentro. Se não der certo, encontramos outra solução. O que sabemos é que precisamos resolver esse problema.
NEGÓCIOS – Qual palavra da moda, frase pronta ou clichê corporativo você não aguenta mais ouvir? Por quê?
Julia – Não gosto quando dizem ‘aqui temos de entregar lucro, então não dá para inovar’. Pelo contrário. A inovação vem das restrições, de quando você tem uma dificuldade. Quando se está na zona de conforto, é muito difícil ser criativo. Então, quando as empresas acreditam que ser focado em lucro é um problema para inovar, elas não entenderam o que é inovação. Quando o lucro é uma restrição e a empresa só enxerga a redução de custo para fazer isso, tem um problema no mindset da companhia. Tem de mudar isso. Existem formas de fazer lucro trazendo receita, achando solução, uma forma mais eficiente de trabalhar… Inovação não é só um aplicativo, é também fazer diferente algo que você sempre fez.
NEGÓCIOS – Qual foi sua melhor decisão profissional? E a pior?
Julia – A melhor foi ter decidido ser líder. Tenho muito mais capacidade de influenciar ao trabalhar com outras cabeças para amplificar o impacto que quero causar. Assim, consigo participar das decisões e ajudar no desenvolvimento das pessoas para que possam impactar ainda mais. Ser líder é difícil porque demanda muita energia, autodesenvolvimento e muita consciência pessoal. Você nunca pode estar cansado porque tem sempre alguém precisando de você. É bem demandante, mas, ao mesmo tempo, é muito maior o impacto que você pode causar na sociedade e nos negócios.
NEGÓCIOS – E a pior decisão?
Julia – Minha pior decisão é ter postergado a maternidade por causa da profissão. Sempre adiando por mais um ano para ser promovida. Hoje sei que sempre tem espaço para construir carreira, não precisa ser naquela empresa, naquele momento… E a maternidade, não. Por mais que se congele óvulo ou embrião, você tem um muro biológico. Se esse é o seu sonho, ele é de longo prazo. Estou com 39 anos e na corrida.
Quando fui contratada no iFood, a primeira coisa que eu falei foi: “eu vou ter filho”. E eles disseram, claro, todo mundo tem. Naquele momento, dois VPs estavam tendo filhos na empresa. Isso me deu muita segurança psicológica. Aqui, as mães têm direito a seis meses de licença à maternidade. Para os homens, são dois meses. Meu relacionamento com o iFood é de longo prazo, então, o que são seis meses? Tem relatos de muita gente contratada grávida ou promovida durante a gravidez. A maternidade não é um tabu velado na empresa.
NEGÓCIOS – Qual é seu melhor hábito? E o pior?
Julia – O melhor é cuidar da saúde. Acho impossível fazer qualquer coisa sem cuidar de você primeiro, desde a saúde psicológica até à física, que estão muito ligadas. Sou a chata da low carb, gosto de acordar cedo, me exercitar…
NEGÓCIOS – E o pior hábito?
Julia – O pior é ser uma procrastinadora horrível na vida pessoal. Sou a última a lembrar que o Réveillon está chegando, nunca lembro de comprar minhas passagens para as férias e sempre acabo pagando mais caro. Tento melhorar, mas não consigo. Então acabo pedindo ajuda.
NEGÓCIOS – Qual foi seu livro preferido nos últimos tempos? Por quê?
Julia – Gosto muito de um livro chamado “Garra: O Poder da Paixão e da Perseverança
Livro”, de Angela Duckworth. A partir de dados sérios, ela prova que talento não é o principal indicador para o sucesso das pessoas, seja no universo profissional, esportivo ou pessoal. O esforço e paixão pelo que você faz têm um peso muito maior. Nasci no interior de Minas Gerais, fiz escola pública a vida inteira. Claro que isso torna as coisas mais difíceis, mas se eu acreditasse que isso iria me limitar, não teria chegado aonde cheguei.
Fonte: Época Negócios