Alterações no projeto de lei complementar do novo arcabouço fiscal estão garantindo recursos extras para o Executivo aumentar seus gastos além dos limites propostos inicialmente pelo próprio governo.
Duas mudanças em particular têm chamado a atenção dos especialistas. A primeira é a autorização para os gastos crescerem até o máximo previsto pela regra em 2024. A segunda é a permissão permanente para o governo utilizar a inflação a seu favor, permitindo mais despesas em caso de aumento dos preços até o final do ano.
Essas manobras asseguram um espaço adicional de até R$ 82 bilhões para os gastos do governo em 2024 e ampliam a base de cálculo para os anos seguintes.
Especialistas apontam que essas mudanças visam atender a pressões por mais gastos, mas consideram isso desfavorável. O Ministério da Fazenda reconhece as dificuldades de elevar as receitas e cumprir os parâmetros, e por isso busca alternativas no Congresso para garantir recursos adicionais.
A proposta discutida estabelece que o limite de gastos do ano seguinte deve ser equivalente a 70% da variação da receita em 12 meses acumulados até junho do ano anterior, descontada a inflação, dentro de uma faixa de 0,6% a 2,5%.
O relator do projeto de lei na Câmara, deputado Cláudio Cajado, fixou o crescimento real das despesas do governo em 2,5%, independentemente da receita. Isso supera a projeção inicial do governo de cerca de 2,3%. A fixação desse percentual reforça a percepção de que seria difícil alcançar esse nível.
Economistas estimam que o crescimento real do limite em 2,5% pode resultar em um adicional de R$ 40 bilhões para o governo em 2024. Essas alterações geram preocupações em relação à imagem do governo, que mostra dificuldades em lidar com suas próprias regras.
Além disso, a mudança na metodologia de reajuste do limite de despesas pela inflação e a permissão de ajustes em caso de aceleração dos preços até dezembro também impulsionam os gastos. Isso significa a possibilidade de ampliar os gastos no próximo exercício. Para 2024, o ajuste nos gastos será permanente, inflando assim a base de cálculo do limite para os anos seguintes.
Essas alterações proporcionam um espaço adicional de pelo menos R$ 35 bilhões, embora técnicos admitam que a expectativa de queda nos preços dos combustíveis reduza esse valor.
Economistas e instituições privadas apontam que o desenho da regra está proporcionando ao governo um espaço extra de aproximadamente R$ 68 bilhões para gastar no próximo ano.
O Ministério da Fazenda não comentou as projeções feitas por instituições privadas, mas afirmou que o projeto do Regime Fiscal Sustentável está seguindo o trâmite normal no Congresso.
Veja ponto a ponto as principais mudanças feitas pelo relator:
OBRIGAÇÃO DE CONTINGENCIAR
- Relator inseriu no texto a obrigação de o governo contingenciar despesas durante o ano, caso haja perspectiva de frustração de receitas ou aumento de outros gastos que ameace o cumprimento da meta fiscal no exercício. A tarefa é exigida pela Lei de Responsabilidade Fiscal, mas o governo pretendia flexibilizar a norma por meio do novo arcabouço.
- Relator inova ao propor que o contingenciamento das discricionárias deve ficar limitado a 25% de seu total.
INCLUSÃO DE GATILHOS DE AJUSTE
Caso as contas do governo apresentem resultado abaixo do limite inferior da meta, fica vedado:
- Alteração de estrutura de carreira que implique aumento de despesa
- Criação ou majoração de auxílios, vantagens e benefícios de qualquer natureza
- Criação de despesa obrigatória
- Medida que implique reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação, observada a manutenção do poder de compra
- Criação ou expansão de programas e linhas de financiamento de dívidas que ampliem subsídios e subvenções
- Concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária
As medidas valem por um ano. Se no ano seguinte a meta for atingida, as sanções caem automaticamente.
O presidente da República pode propor ao Congresso a suspensão parcial ou maior gradação das vedações listadas acima, desde que demonstre que o impacto e a duração das medidas adotadas serão suficientes para a correção do desvio.
Medidas de ajuste não se aplicam aos reajustes do salário mínimo definidas em lei de valorização do piso.
No segundo ano seguido de descumprimento, passa a ficar vedado também:
- Aumentos e reajustes em geral na despesa com pessoal
- Admissão ou contratação de pessoal, a não ser para repor vacâncias
- Realização de concurso público, exceto para repor vacâncias
DIMINUIÇÃO DA LISTA DE EXCEÇÕES AO LIMITE DE DESPESAS
O que o relator tirou da lista de exceções proposta pelo governo (ou seja, itens passam a consumir espaço no limite de gastos):
- Despesas com investimentos do Tesouro em empresas estatais não-financeiras
- Repasses a estados e municípios para bancar o piso da enfermagem
- Fundeb (fundo da educação básica)
- Ajuda federal às forças de segurança do Distrito Federal por meio do FCDF (Fundo Constitucional do Distrito Federal)
Como ficou a lista de exceções ao limite de gastos:
- Transferências constitucionais a estados e municípios a título de repartição tributária
- Créditos extraordinários, liberados em casos imprevisíveis e urgentes (como os decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública)
- Despesas custeadas com recursos de doações ou de acordos judiciais ou extrajudiciais firmados em função de desastres
- Despesas das universidades e instituições federais, e das empresas públicas da União prestadoras de serviços para hospitais universitários federais, quando custeadas com receitas próprias, de doações ou de convênios
- Despesas custeadas com recursos oriundos de transferências dos demais entes da Federação para a União destinados à execução direta de obras e serviços de engenharia
- Despesas com acordos de precatórios a serem pagos com desconto
- Operações de encontros de contas com precatórios
- Despesas não recorrentes da Justiça Eleitoral com a realização de eleições
- Transferências legais a estados e municípios de recursos obtidos com concessão florestal
CÁLCULO DE RECEITAS
- Adiciona à lista de exceções do cálculo das receitas os programas especiais de recuperação fiscal que sejam destinados a regularizar a situação de devedores e gerar recursos à União. Com isso, o governo não poderá usar esse tipo de recurso para expandir a receita e, em consequência, a despesa do ano seguinte.
- Relator manteve de fora do cálculo das receitas os demais itens propostos pelo governo. São eles toda a arrecadação com concessões e permissões, dividendos e participações pagos por estatais, e ganhos com a exploração de recursos naturais (o que compreende principalmente royalties com petróleo) –além da conta com transferências constitucionais feitas a estados e municípios.
BÔNUS PARA INVESTIMENTOS
- Passa a prever que apenas 70% do excesso de superávit poderá ser direcionado a investimentos. No projeto original, o excesso de arrecadação em relação à meta de primário poderia ser usado, de forma única, para bancar obras e outros investimentos sem afetar o limite de despesas. Haveria apenas um limite temporário, equivalente a R$ 25 bilhões (corrigido anualmente pela inflação), válido até 2028.
Tramitação
Com a aprovação da urgência, o projeto pode ser votado rapidamente no plenário, sem passar pelas comissões. O relator apresenta seu parecer durante a sessão e o texto é lido na tribuna, com possibilidade de votação imediata. A votação do mérito está programada para a próxima quarta-feira (24).
Para que a proposta seja aprovada no Congresso, projetos de lei complementar exigem maioria absoluta de votos favoráveis, ou seja, mais da metade dos membros de cada Casa, o que significa pelo menos 257 votos na Câmara e 41 votos no Senado.
O percurso final da tramitação ocorre após passar pela Câmara dos Deputados, quando o texto segue para o Senado. Se não houver alterações, o texto é encaminhado para a sanção presidencial.
No entanto, se os senadores fizerem modificações no texto, o projeto retorna para a Câmara, que tem a palavra final. Os deputados podem aceitar as mudanças dos senadores ou restaurar o texto originalmente aprovado na Câmara. Após essa nova votação, o texto é enviado para a sanção do presidente.
O chefe do Executivo tem 15 dias úteis para sancionar o projeto integralmente, fazer vetos parciais em alguns dispositivos ou vetá-lo completamente. Todos os vetos passam por uma posterior validação do Congresso, que pode derrubá-los com uma maioria absoluta de deputados (257) e senadores (41).
Fonte: Folha