O primeiro DVD que a goiana Marília Mendonça gravou, em 2015, foi intimista —eram cerca de 30 pessoas, incluindo a produção, ao redor daquela voz que já se mostrava potente.
Em 2016, pouco mais de um ano depois, a história já era outra: 40 mil pessoas se apinharam para assistir à já consagrada rainha da sofrência no sambódromo de Manaus, e cantar em uníssono “Infiel”, seu primeiro grande sucesso.
Antes do hit, Marília compunha desde os 12 anos e emplacara letras nas vozes de artistas consagrados no segmento, como Henrique e Juliano, Jorge e Mateus e Cristiano Araújo, este morto em 2015.
Do show gravado em Manaus em diante, a artista viveu em ascensão. Nesta sexta (5), aos 26 anos, encerrou de forma trágica sua história, vítima de um acidente de avião no interior de Minas Gerais.
O que não se apaga, entretanto, é a luz que ela jogou para as mulheres na música sertaneja. Caminho este que já era trilhado por outros nomes do sertanejo ou da música caipira, como Roberta Miranda, Sula Miranda e as irmãs Galvão. Mas que estava latente e tomado por um cenário masculino e machista.
Com um microfone na mão, Marília Mendoça cantou que o seu cupido “era gari, só traz lixo”. Chamou o companheiro de infiel e o mandou “morar num motel, o expulsando de seu coração”.
Subiu ao palco descalça, sem sapato, com copo de cerveja na mão. Foi criticada por beber após ser mãe e resolveu fazer sua live, já na pandemia, usando uma xícara fosca onde se lia “existe uma chance disto ser cerveja”.
Foi ao Domingão do Faustão pela primeira vez em 2016, quando consagrava sua carreira como intérprete. Mas ao mesmo tempo que falava de suas composições, respondia sem graça piadas do apresentador sobre seu sobrepeso. Rendeu-se aos padrões, emagreceu, colocou lentes nos dentes.
Quando perguntada sobre ter sido uma das precursoras do que se convencionou chamar de feminejo, desconversava. À Folha, certa vez, disse “sou mulher, me depilo, cuido da minha casa, então vão tirar minha carteira de feminista”. E completou: “Mas a base do movimento, de que a mulher pode ser o que ela quiser, é essa bandeira que eu levanto. Não a modinha.”
Mal sabia ela que não se tratava de modinha. Talvez pela pouca idade, pela cor e pela situação financeira privilegiadas, não tinha percebido a dimensão de suas letras de norte a s ul do país. A música que entrou nas festas, nos bares, nas casas de gente rica e pobre.
“A mulherada tomou coragem de falar sobre os assuntos que realmente vive”, disse. E foi ela, Marília Mendonça, uma das mulheres que abriram essa porteira.
Fonte: Folha