Uma das montadoras que mais investem em eletrificação no mundo, a Toyota resolveu abastecer o seu carro elétrico com etanol, uma energia limpa, abundante no Brasil e que tem sido usada pela companhia em carros híbridos flex – com motor elétrico e que pode ser abastecido com gasolina e álcool.
“O investimento para fazer uma rede de carregadores é imenso e o Brasil tem outras prioridades de investimento em termos de infraestrutura pública”, diz o CEO da Toyota no Brasil, Rafael Chang, em entrevista exclusiva ao NeoFeed.
Não significa que a Toyota esteja abdicando do carro 100% elétrico. Afinal de contas, é uma das grandes apostas da montadora japonesa. Globalmente, a meta é que, até 2025, pelo menos uma versão de seus carros tenha algum grau de eletrificação.
No Brasil, o plano já está em ação. A Toyota foi a primeira marca a lançar um híbrido flex, em uma versão do Corolla Sedan, em 2019. Em março deste ano, a montadora japonesa apresentou também uma versão híbrida flex do Corolla Cross, um novo SUV da companhia. Ambos são produzidos na fábrica de Indaiatuba, no interior de São Paulo, que recebeu investimento de R$ 1 bilhão para desenvolver a tecnologia.
As duas versões lideram a lista de híbridos mais vendidos do País. No primeiro semestre, o Cross havia vendido 3,6 mil unidades, enquanto o Sedan atingiu 3,5 mil vendas, segundo a Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE). Juntos, eles representaram 52% do segmento, mas apenas 9% dos 78,5 mil veículos vendidos pela Toyota no Brasil no período.
Ao mesmo tempo que desenvolve seu carro elétrico, a Toyota precisa lidar com os problemas de escassez de semicondutores no mundo, que tem afetado toda a indústria no mundo.
Última a sofrer os efeitos da crise, por conta de um esquema global criado antes da pandemia que exige que os fornecedores tenham estoques para períodos de dois a seis meses, a montadora só fez a sua primeira parada na produção brasileira há dois meses, nas fábricas de Sorocaba e Indaiatuba, em São Paulo, que juntas podem produzir 182 mil carros por ano.
Menos afetada que as demais montadoras, a Toyota conseguiu elevar a sua participação de mercado, nos últimos 12 meses, de 7,22% para 8,65%. Manteve-se, porém, na quinta posição, atrás de Fiat, Volkswagen, GM e Hyundai. Mesmo assim, tem operado no vermelho, como a maior parte da indústria. “Estamos tentando sair para pagar nossas contas”, diz.
Ao NeoFeed, o executivo também falou sobre investimentos no Brasil, o futuro das fábricas e os planos para descarbonizar a montadora. Confira:
Como a Toyota do Brasil está enfrentando a escassez de semicondutores?
Estamos surfando a onda. Na Toyota, estamos dentro de um planejamento global, com um sistema bastante robusto de médio e longo prazo, com muita coordenação com nossos fornecedores de peças. É uma das razões pela qual a Toyota foi a última e a menos impactada por esse problema. A primeira parada que tivemos por falta de peças foi em agosto, nas duas fábricas (Sorocaba e Indaiatuba, ambas no interior de São Paulo). E grande parte disso não foi falta de semicondutores. Tivemos problemas com fornecedores na Ásia (Malásia), que, por causa da covid-19, não podiam trabalhar, porque o governo de lá decretou lockdown. Mas, se temos problemas por falta de uma peça ou componente, podemos ir a outro fornecedor ou recorrer ao embarque aéreo.
Agora que o impacto chegou, quais são as perspectivas até tudo voltar ao normal?Nosso fornecedor que teve problemas já retomou a produção, mas não posso dizer que está tudo resolvido. O problema vai continuar por pelo menos mais seis meses. Dentro disso temos que procurar soluções.
O fato de o impacto ter chegado depois para a Toyota ajudou a conseguir participação de mercado?
Sim. Mas, novamente, estamos muito pé no chão. Nos meses em que nosso market share subiu, as outras montadoras não tinham produto no mercado. O market share (a Toyota tem 8,65% em 2021, até setembro) para nós é consequência, não é um objetivo a ser alcançado.
E como está a produção nas fábricas?
Estamos rodando com capacidade normal, em dois turnos nas duas fábricas, de Indaiatuba e Sorocaba (ambas no interior de São Paulo). Em Sorocaba, íamos começar o terceiro turno em janeiro, mas antecipamos para dezembro, se tudo der certo e não tivermos outros problemas de peças.
“Íamos começar o terceiro turno em janeiro, mas antecipamos para dezembro”
A Toyota tem conseguido exportar?
Com a introdução do Corolla Cross, que lançamos em março, exportamos para mais de 20 países na América Latina. Nosso processo de exportação começou com Etios, Yaris e Corolla Sedan, principalmente no Mercosul. Depois ampliamos para Chile, Colômbia e Peru. Agora temos o Corolla Cross, um produto que está sendo muito demandado para toda a região. Na Colômbia, foi o veículo mais vendido do mercado de agosto (entre elétricos e híbridos).
Tem sido um momento mais favorável para as montadoras voltarem a lançar carros?
Em nosso caso, nenhum dos planos de produtos e serviços pararam durante a pandemia. Para o Corolla Cross, preparamos a linha e treinamos os funcionários durante a pandemia. No ano passado, em junho, em plena pandemia abrimos também uma nova empresa, a Kinto, de mobilidade. Alguns meses depois, começamos com o serviço Kinto Share, de aluguel de curto prazo, e o Kinto One Fleet, de solução de frotas para empresas. E depois, em setembro passado, lançamos o Kinto One Personal, para assinatura de carros.
Como estão as conversas com a matriz no Japão para um novo ciclo de investimento?
Acabamos de concluir um ciclo de R$ 6 bilhões, após investir R$ 1 bilhão para a renovação da linha em Indaiatuba, para desenvolver o Corolla Cross, com tecnologia híbrida. Para o próximo ciclo, não é fácil. Estamos em plena discussão com matriz e há muitas variáveis. Nós, de um jeito ou de outro, brigamos para trazer investimentos para o Brasil. Nesse caso, temos que demonstrar a viabilidade do projeto financeiro em comparação a fábricas no México, na Europa e na Ásia.
A gravidade da pandemia no Brasil atrapalha?
Claro, tem o assunto da pandemia, mas os investimentos da nossa indústria são de médio e longo prazo. Outra questão é a previsibilidade: regras para o setor e políticas públicas. Para isso, há conversas muito aquecidas no setor sobre descarbonização, em linha com nosso desafio ambiental para 2050, de reduzir a zero as emissões de carbono. Um terceiro ponto é a competitividade, para produzir nossos produtos e vender localmente e também para exportar. Nossa concorrência não são só as outras marcas, mas também os próprios produtos da Toyota produzidos em outras fábricas.
Como faz para explicar para a matriz o que será do Brasil, uma vez que em 2022 devemos ter uma eleição difícil?
A questão política sempre estará presente. Não só aqui no Brasil, mas em qualquer país. São ciclos de quatro ou cinco anos, dependendo do país, que pode ir em uma direção ou outra. Temos vários cenários, mas é uma variável que está fora de nossa decisão. Caso aconteça uma coisa ou outra, vamos tomar decisões. Mas o mais importante são as reformas, como a reforma tributária. Como será o marco tributário em um, dois, três, cinco anos, que é o nosso horizonte de investimento.
Qual a sua avaliação sobre a reforma tributária que está em discussão?
Seja qual for a proposta, tem um impacto em nossa operação. Para nós, o mais importante é saber qual será o caminho, porque, em cima disso, vamos fazer nosso plano de negócios. Para nós, o importante dentro da reforma tributária são três coisas. A primeira é a simplificação. Uma das promessas que fiz, quando cheguei ao Brasil, é que iria entender como funciona o sistema tributário brasileiro. Falaram para mim: Rafael, esquece, nem a gente entende. O segundo é a isonomia, para criar regras de concorrência de mercado iguais para todas as marcas. E o terceiro ponto é trabalhar a descarbonização.
Em que pé está essa discussão sobre descarbonização com o governo, em termos de incentivos?
Em primeiro lugar, sinto que o assunto está entrando dentro da agenda pública, do governo e do setor privado. Para fazer isso, todos os atores têm de falar. A pior coisa é achar que é preciso copiar o modelo europeu ou o americano. Não digo que lá é bom ou ruim. Tem a ver com características próprias de cada região. É um processo que vai exigir investimentos, públicos e privados, e vai exigir a transformação da indústria. Agora, no setor automotivo, se fala muito da eletrificação, para introduzir carros elétricos. O conceito é muito maior que isso, temos de olhar o ciclo de vida. A geração de energia pode ter a melhor solução tecnológica, mas, se usar uma fonte de energia não limpa ou não renovável, não está fazendo nada.
“O investimento para fazer uma rede de carregadores é imenso e o Brasil tem outras prioridades de investimento”
Qual seria o caminho, então?
Temos muitas soluções disponíveis: podem ser carros híbridos, elétricos ou movidos a células de combustível. No nosso caso, a decisão é de começar com a introdução de híbridos e depois passar ao híbrido flex, usando etanol, que é um dos combustíveis mais limpos e sustentáveis, e que faz parte da matriz energética brasileira. Falo disso porque, agora, seria impensável transformar todo o parque brasileiro para veículos elétricos. O investimento para fazer uma rede de carregadores é imenso e o Brasil tem outras prioridades de investimento em termos de infraestrutura pública. Não estamos negando que carro elétrico será uma solução, mas, neste momento, considerando a infraestrutura, a matriz energética, a necessidade dos clientes, a solução que estamos trazendo, utilizando o híbrido flex, com o etanol, é a mais prática e a mais sustentável.
O etanol seria uma transição até a eletrificação?
Não é uma discussão para dizer, por exemplo, que daqui a cinco anos vamos ter só elétrico, ou que em 10 anos só vamos ter carros movidos a hidrogênio. Acho que teremos diversidade de utilização de tecnologia. Imagina uma fazenda no interior: será que fará sentido colocar lá um carregador para carro elétrico? Eu acho que não. Possivelmente, para ele, o híbrido será a solução. Para cidades urbanas, talvez o carro elétrico seja a solução, desde que utilize fonte de energia limpa.
Há quem diga que uma aposta no etanol poderia atrasar a eletrificação no Brasil…
O etanol pode ser aliado nesse processo. Já está em discussão gerar energia de hidrogênio utilizando etanol. Pode haver outras regiões onde a geração de energia é mais limpa que no Brasil. Eles provavelmente não vão usar etanol. Mas há uma tendência forte sobre etanol na Índia e em outros países do sudoeste asiático. Para nós, seria ideal, porque a exportação é um dos nossos pilares. A indústria brasileira tem capacidade de produzir 5 milhões de veículos por ano. O Brasil, sem problema de peças, pode chegar a um mercado interno de 3 milhões ou 3,5 milhões. Ainda teríamos uma capacidade ociosa de 1,5 milhão. Exportar é uma das respostas.
Quais as metas da Toyota para descarbonização no Brasil?
A nossa meta é seguir a direção da matriz. Primeiro, vamos eletrificar todo nosso portfólio até 2025. Isso significa que, dentro de cada modelo, vamos ter pelo menos uma versão eletrificada: pode ser carro híbrido, híbrido flex, com tecnologia plug-in hybrid (híbrido que pode ser carregado por meio de tomada), carros elétricos, e carros movidos a células de combustível. Nossas plantas também têm de caminhar nesse sentido. Podemos produzir carros muito limpos, mas se a fábrica não é eficiente e produz muito carbono não estamos zerando nosso ciclo de vida. Por isso, nós adiantamos nossa meta de descarbonizar as plantas para 2035.
“Vamos eletrificar todo nosso portfólio até 2025”
O que a direção da matriz pensa desse foco para o etanol no Brasil?
A direção da matriz é prática e sustentável. Prática no sentido de que temos que oferecer o que é melhor para o cliente, considerando a necessidade e características próprias do mercado. A nossa matriz entende que o etanol é combustível abundante no Brasil e, sobretudo, vai contribuir com o propósito da descarbonização. Então, entende perfeitamente. Por isso, o desenvolvimento do sistema híbrido flex, que utiliza etanol, foi feito com engenheiros brasileiros juntamente com engenheiros da nossa matriz.
Qual a expectativa da Toyota para o mercado brasileiro?
Para este ano, não sei se faz sentido, com o problema de falta de peças, projetar se teremos um mercado com 2,1 milhões ou 2,5 milhões de vendas, pois não é uma questão de demanda. Não estou olhando os números para esse ano. Nosso principal objetivo é ter peças, para manter a operação rodando. Na ponta, temos clientes esperando os carros. Para o próximo ano, se tudo der certo, podemos ter um mercado com 2,5 milhões de vendas. A notícia boa é que o mercado latino-americano está quente. Recebo ligações de Colômbia, Peru, Chile, Costa Rica, perguntando quando vou enviar mais carros.
Mas no Brasil temos desemprego em alta, inflação alta e juros em alta. A demanda vai estar quente quando tudo voltar ao normal?
Ainda não vemos piora. Mas há tudo isso, sim. Os custos estão subindo e os preços dos carros também, não vou negar. O setor automotivo é um espelho de parte da inflação nos custos locais. E também há o impacto da própria falta de materiais, a nível global, que faz o custo ir para cima. Parte disso temos de repassar para o mercado. Em paralelo, temos de fazer a lição de casa e reduzir nossos custos.
Isso tem afetado a rentabilidade do negócio?
O ano passado foi muito difícil. Ficamos no vermelho. Neste ano, estamos tentando sair do vermelho para pagar nossas contas. E isso tem a ver com competitividade, para reduzir custos, exportar mais, localizar mais as peças, porque a operação está muito exposta ao dólar. Não posso negar também que, antes da pandemia, a situação financeira da empresa já era difícil. Nosso esforço para reduzir custos e localizar mais é dos últimos cinco anos.
O que está sendo feito para sair dessa situação?
Para isso, não vamos focar só nos custos e em mais exportação, mas na transformação também da estrutura do negócio. Não vamos deixar de produzir e vender carros do jeito tradicional. Mas alguns consumidores não querem mais ter carro. Temos, então, a alternativa de programa de assinatura ou do aluguel de curta duração. Para empresas, damos a solução de gestão de frota. A diversificação do negócio é importante.
A ideia é concorrer com as locadoras, então?
No final das contas, o cliente final vai decidir isso. Nosso objetivo não é competir diretamente com eles. Nosso objetivo é oferecer ao cliente o que eles querem. A compra de carros, por exemplo, tem em outras montadoras. O sistema de aluguel, de frota, de assinatura, outras montadoras têm programas similares, e tem as locadoras. Deixamos a decisão final para o cliente. Nosso objetivo é oferecer o melhor serviço.
Fonte: Neofeed