Artigo de Aod Cunha *
O País não gasta pouco com políticas sociais, mas gasta mal. Gastar mais hoje, dependendo como, talvez signifique ter menos recursos amanhã
Recentemente, num debate com os economistas Marcos Mendes, Laura Carvalho e Monica de Bolle, Armínio Fraga lembrou de suas conversas com a equipe econômica de Nelson Mandela no seu governo na África do Sul (como o Brasil, um país conhecido pela sua enorme desigualdade social), logo que assumiu o Banco Central no Brasil.
A equipe econômica de Mandela era ligada ao seu partido Congresso Nacional Africano e comprometida com o discurso de um crescimento econômico com mais justiça social. O que impressionou Armínio, segundo ele, foi o relato que ouviu: “Chegamos aqui todos cheios de sonhos, mas rapidamente nos demos conta que o melhor que podíamos fazer para os mais pobres era evitar que o país quebrasse”.
Com as inevitáveis políticas compensatórias da pandemia que vivemos, o déficit nominal do Brasil deve superar os 15% em 2020. Talvez ultrapasse com folga, dependendo de como forem renovados os atuais programas de auxílio às pessoas, empresas e entes subnacionais.
Isso, como já apontamos em outro artigo aqui (“A expansão fiscal que não podemos fazer”), deve levar o país a uma relação dívida/PIB próxima de 100% em 2021. A questão é o que faremos a partir de 2021, e como combinaremos o que queremos em termos de políticas sociais com a nossa capacidade de financiá-las.
Mas o Brasil gasta pouco com políticas sociais ou gasta mal?
De acordo com estudos da STN ao final de 2018, e seguindo a metodologia da OCDE/ONU, quando o Brasil é comparado com 57 economias emergentes e avançadas só perde para Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia em termos de gasto público total do governo central, com 33,7% do PIB. Vale lembrar que esses países têm renda per capita de 4 a 5 vezes maior que o Brasil e carga tributária significativamente mais alta.
Em termos de gastos com proteção social, incluindo aposentadorias e pensões, o Brasil gasta aproximadamente 13% do PIB, contra uma média de 7,6% das economias emergentes e 8,2% das economias avançadas.
Voltemos então aos países nórdicos nesse subgrupo de gastos públicos. Eles gastam na média 12,8%, o mesmo patamar do Brasil. Com uma diferença marcante: a proporção de idosos naqueles países é significativamente maior do que no Brasil. No Brasil, a população acima de 65 anos é aproximadamente 14% do total, enquanto na Finlândia, por exemplo, é de 36%.
Vamos aos gastos de outro subgrupo: educação.
No estudo Education at a Glance divulgado em 2019, portanto antes da recente alteração que aumenta o gasto público com o FUNDEB, a OCDE mostrou que o Brasil gasta mais que a média dos 36 países da organização e outros 10 inseridos na amostra. Enquanto gastamos 4,2% do PIB em educação, a média da OCDE é de 3,2%, já corrigidos os números pela Paridade do Poder de Compra (PPP) das diferentes moedas.
Um aspecto interessante é a comparação do gasto em educação nos diferentes ciclos de aprendizado. Em termos de gasto por aluno, o Brasil gastava, em 2019, US$ 3,8 mil por aluno do primeiro ciclo fundamental (até a 5ª serie) contra uma média de US$ 8,7 mil dos países da OCDE. Ainda assim, o Brasil apresentava gasto superior por aluno a países como Argentina (US$ 3,4 mil), México (US$ 2,9 mil) e a Colômbia (US$ 2,5 mil).
Quando passamos à comparação do gasto por aluno no ensino superior, os números mudam significativamente. O Brasil gasta aproximadamente US$ 11,7 mil por aluno, mais do que o triplo da média das despesas com o ensino fundamental e médio.
Esse número, ainda que abaixo da média da OCDE, de US$ 16 mil, é próximo ao de países como Portugal (US$ 11,8 mil), Estônia (US$ 12,3 mil) e Espanha (US$ 12,5 mil). O gasto brasileiro é superior ao de países como Itália (US$ 11,5 mil), República Checa (US$ 10,5 mil), Polônia (US$ 9,7 mil) e Coréia do Sul (US$9,6 mil). De novo, vale lembrar que todos os países acima têm renda per capita muito superior à renda per capita brasileira.
Por último, vamos olhar para os gastos públicos com o sistema de saúde.
De acordo com o relatório Aspectos Fiscais da Saúde no Brasil, divulgado conjuntamente pela Secretaria do Tesouro Nacional e pelo Banco Mundial ao final de 2018, o Brasil estava na 64º posição em gastos com saúde num ranking com 183 países.
O Brasil gastava 3,8% do PIB em saúde em 2016 contra a média de 3,6% da América Latina e Caribe. Já os países desenvolvidos (com uma proporção de população idosa mais elevada) gastavam, em média, 6,5% do PIB em saúde.
O resumo dos parágrafos anteriores mostra um país que em relação aos seus pares:
- tem elevado gasto público em proporção do PIB (mesmo excluindo as despesas com juros da dívida pública), mesmo quando comparado com os países mais ricos
- gasta muito especialmente com aposentadorias e pensões, mesmo quando comparado com os países mais ricos
- gasta um pouco acima da média do que seus pares latino-americanos na educação fundamental, mas menos do que os países mais ricos
- gasta como país rico no ensino público superior
- gasta em saúde como seus pares latino-americanos, mas menos do que os países mais ricos (e mais velhos)
A comparação do Brasil, especialmente com países de renda per capita semelhante, mostra que não gastamos pouco com a área social. Gastamos significativamente acima da média destes países.
Por outro lado, tudo indica que gastamos mal. Mostram isso o excesso de gastos com aposentadorias e pensões, a desproporção de gastos por aluno entre o ensino fundamental e o superior (um problema de prioridade de alocação), ou mesmo os resultados de avaliação internacional de aprendizado, como o teste de PISA. Nesse resultado, é possível ver o problema da baixa eficiência na aplicação de recursos, quando nos comparamos com países com gastos semelhantes.
O que acontecerá com as políticas sociais se o déficit público ficar fora de controle?
Imagine o seguinte cenário no início do ano que vem: o país chega a uma proporção de dívida pública de 100% do PIB. Vamos ser otimistas que até lá o cenário global de liquidez continue muito favorável, as taxas de juros globais continuem próximas de zero, a inflação no Brasil continue muito baixa e assim também as taxas de juros.
Hoje, assumindo o risco de uma previsão seis meses à frente, o cenário acima parece factível. Mas a pergunta relevante é: faremos o que a partir de 2021? 2020 terá sido apenas um ano atípico para a política fiscal e voltaremos para uma trajetória sustentável da dívida pública? Ou escolheremos manter a expansão dos programas sociais, sejam os já existentes antes da pandemia ou os introduzidos a partir de 2020?
A segunda alternativa, que implica logo ali em 2021 na manutenção de elevados déficits fiscais, acarretará duas alternativas de ajustamento, não necessariamente excludentes: aumento substancial da já elevada carga tributária e/ou elevação das taxas de juros.
Como a atual carga tributária brasileira de 33% já é alta para padrões mundiais (muito próxima dos 34% dos país mais ricos da OCDE e bem acima dos 23% da América Latina e Caribe), não se deve desprezar os efeitos de um aumento adicional da carga tributária sobre os investimentos e a renda num país que há muitos anos não cresce ou cresce muito pouco.
Seria possível então imaginar que poderíamos continuar a expandir o gasto e manter déficits públicos muito elevados durante muito mais tempo? Não é o que a história de países como o Brasil, Argentina, México e outros com características fiscais e monetárias semelhantes mostra.
Em algum momento, cedo ou tarde, a desconfiança sobre a sustentabilidade da política fiscal pressiona as taxas de juros para cima, independente da vontade dos governos locais. Foi assim inúmeras vezes ao longo das décadas de 80, 90, 2000, 2010 e, mais recentemente, com a Argentina no ano passado.
Antes disso, é bom fazer contas. Com uma dívida pública próxima de 100% no ano que vem, quanto representaria a elevação de apenas 1 ponto percentual em média nos diferentes pontos da curva de juros da dívida pública brasileira doméstica (aqui há uma simplificação, dado que a desconfiança em relação a sustentabilidade da dívida levará a movimentos distintos de alta da taxa de juros em diferentes pontos da curva)?
Como não sabemos o PIB de 2020, apenas que irá cair em termos reais, peguemos o PIB nominal de 2019: R$ 7,3 trilhões. Um ponto percentual de juros a mais sobre uma dívida deste tamanho significaria 73 bilhões de reais a mais de gastos com juros por ano. Isso equivale a quase 2,5 vezes de todo o gasto anual com o Bolsa Família para aproximadamente 13,1 milhões de famílias, ou 40 milhões de pessoas.
Imagine a taxa de juros subindo 4 pontos percentuais. Absurdo? Hoje provavelmente sim, mas não num cenário de descontrole fiscal. Nossa vizinha Argentina chegou a 80% de taxas de juros nominais em 2019, mesmo que num contexto bastante diferente do que ainda vemos hoje no Brasil. Quatro pontos percentuais de taxas de juros sobre um estoque de dívida de 100% do PIB , depois de um ano, representariam o equivalente a 10 anos de gastos com o Bolsa Família.
É importante ficar claro que há uma enorme diferença entre uma elevação de juros que segue um movimento de acomodação de retorno ao crescimento econômico e o movimento de alta descrito acima, fruto da aversão ao risco dos detentores de dívida pública em relação a uma piora acentuada da política fiscal.
Se o Congresso Nacional e o Governo Federal optarem por ampliar os gastos sociais nesse momento, é importante que a sociedade saiba com transparência como esses gastos serão financiados no futuro. Dependendo da escolha, logo a frente é provável que o sonho de mais gastos sociais vire apenas a realidade da falta de recursos para financiá-los.
Seria muito importante também que, antes de se aprovar a ampliação de programas sociais, tivéssemos a capacidade de avaliar os programas que já executamos. Há inúmeros indícios de que gastamos mal, e não pouco, em várias áreas.
Evitar que o Brasil quebre pode ser a mais importante política social nos próximos anos.
*Aod Cunha, economista, conselheiro de administração de empresas como Gerdau, Grupo Vibra, Agibank e Atiaia Energia (Grupo Cornélio Brennand) e membro independente de comitês de investimentos. Foi sócio do Banco BTG Pactual e managing director do JP Morgan. Entre 2007 e 2009 foi secretario da fazenda do Estado do Rio Grande do Sul e presidente do conselho de administração do Banrisul. É professor do curso de pós graduação em Finanças, Investimentos e Banking da PUCRS