Artigo de Jean Tosetto
“Divide as dificuldades que tenhas de examinar em tantas partes quantas for possível para uma melhor solução.” – René Descartes
A Bolsa de Valores de Amsterdã é a mais antiga do mundo em atividade, tendo sido fundada em 1602 pela Companhia Neerlandesa das Índias Orientais. Em 2000 ocorreu uma fusão com a Bolsa de Bruxelas e com a Bolsa de Paris para a formação da Euronext, cujo principal índice é o AEX.
Para compreendermos a origem das modernas Bolsas de Valores, precisamos retroceder algumas décadas para registrar a importância da Reforma Protestante, deflagrada em 1517 por Martinho Lutero, resultando na Contrarreforma a partir de 1545. Estes movimentos colaboram para marcar o fim da Idade Média, numa transição que ficou conhecida como a Renascença, desaguando posteriormente na separação entre Igreja e Estado, abrindo brechas para novas relações econômicas entre nações.
Neste contexto, Amsterdã, atualmente parte da Holanda, passa a ser uma cidade muito receptiva, por abrigar um porto com boas condições geográficas de defesa contra ataques de inimigos, e por seu ambiente de tolerância cultural, que atraiu comerciantes vítimas de perseguições religiosas, entre os quais muitos protestantes, judeus e católicos heterodoxos.
Amsterdã também foi favorecida pela comunicação fluvial com outras cidades importantes do norte da Europa, de modo que no começo do século XVII o mercado de commodities se desenvolveu rapidamente em seus arredores, favorecido ainda pela proeminente atividade da construção naval. Logo, Amsterdã tornou-se também o grande empório de mercadorias gerais da Europa.
Método para pensar e prosperar
A circulação de riquezas na cidade construída sobre aterros alagadiços, aliada à tolerância religiosa, proporcionou a criação de um ambiente intelectual favorecido. Além de ser o novo centro mundial do comércio na época, Amsterdã tornou-se um centro de publicação e venda de livros. Entre as grandes mentes que a nova metrópole atraiu, estava o francês René Descartes (1596-1650), conhecido como o pai da matemática moderna e o fundador da filosofia moderna, a quem ficou atribuída a célebre máxima: “Penso, logo existo”.
Registros de sua biografia indicam que Descartes morou nas Províncias Unidas (atual Holanda) entre 1627 e 1628, onde teria escrito “Regras para a direção do espírito”. Posteriormente, em 1633, fixa residência em Amsterdã, onde permaneceria de forma intermitente até 1649. Lá, ele concebe uma filha com sua empregada doméstica e finaliza a redação de “Discurso do método” livro que simplesmente lança as bases do pensamento cartesiano, cujas fundações sustentam a evolução do conhecimento científico até hoje.
O próprio Descartes sintetiza a proposta de seu método em breves linhas, por intermédio de quatro preceitos lógicos:
“O primeiro era não aceitar jamais alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal: isto é, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e nada incluir em meus julgamentos senão o que se apresentasse de maneira tão clara e distinta a meu espírito que eu não tivesse nenhuma ocasião de colocá-lo em dúvida.
O segundo, dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas possíveis e que fossem necessárias para melhor resolvê-las. O terceiro, conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir aos poucos, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem naturalmente uns aos outros.
E o último, fazer em toda parte enumerações tão completas, e revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir.”
A afinidade de Descartes com Amsterdã
Em seu discurso, Descartes não prega contra as emoções, mas enaltece o uso da razão. Para ele, até os dogmas teológicos podiam ser contestados. A despeito disso, ele recorreu ao seu método de pensamento para demostrar, com recursos geométricos e matemáticos, a existência de Deus e da alma em distinção ao corpo humano. Tamanha ousadia lhe valeu a inclusão de vários de seus escritos no Index da Igreja Católica em 1663.
Não por acaso, Amsterdã era tão receptiva para o filósofo e cientista, que numa carta para seu amigo Balzac, em 1631, escreveu: “Eu poderia viver aqui a vida toda sem nunca ser notado por uma alma. Ando todos os dias em meio à agitação da multidão com tanta liberdade e repouso quanto você obtém em seus frondosos bosques, e não presto mais atenção nas pessoas que encontro do que nas árvores de seus bosques ou nos animais que navegue até lá. A agitação da cidade não perturba mais meus devaneios do que a ondulação de um riacho… Sempre que você tem o prazer de ver a fruta crescer em seus pomares e de banquetear seus olhos com sua abundância, lembre-se de que isso me dá o mesmo prazer ao ver os navios chegando, carregados com todos os produtos das Índias e todas as raridades da Europa. Onde mais você poderia encontrar, tão facilmente quanto aqui, todas as conveniências da vida e todas as curiosidades que você poderia esperar ver? Em que outro país você poderia encontrar essa liberdade completa, ou dormir com menos ansiedade, ou encontrar exércitos prontos para protegê-lo, ou encontrar menos envenenamentos, atos de traição ou calúnia?”
A moral provisória de Descartes
Ciente de que suas afirmações poderiam provocar a ira de líderes religiosos e políticos, René Descartes também propôs em sua obra-prima o seguimento de uma “moral provisória”, que evitasse e demolição total de uma casa, por exemplo, para reformá-la aos poucos. Assim, quem exercesse o “livre pensar” poderia conviver melhor com a sociedade vigente no momento. De acordo com Denis Lerrer Rosenfield, estudioso da produção de Descartes, a sua moral provisória era composta por quatro premissas:
“A primeira estipula seguir as regras existentes em cada país, de modo que os costumes e as leis sejam observados.
A segunda postula que devemos ser resolutos e firmes em nossas ações, pois por maior incerteza que tenhamos devemos agir de modo que cheguemos a algum lugar, mesmo que reconheçamos, depois, que chegamos a um lugar errado. Pessoas que hesitam constantemente não chegam a lugar nenhum, como se andassem em círculos.
A terceira pressupõe que as mudanças sejam feitas na consciência de cada um, para que o exercício da razão se torne uma maneira habitual de pensar, sem preconceitos.
Por último, a moral implica, principalmente, uma escolha de vida. Descartes escolheu como sua dedicar-se à filosofia, à procura da verdade, ordenando todas as ações conforme esse fim.”
Como todo renascentista que se preza, René Descartes se interessava por vários temas, desde astronomia até anatomia, passando pela medicina e pela biologia. No próprio “Discurso do método” ele descreve, com riquezas de detalhes impressionantes para a época, o funcionamento do sistema circulatório do corpo humano, tratando das funções do coração, dos pulmões, das artérias e das veias. O que poucos historiadores mencionam, porém, é que Descartes teria sido investidor na Bolsa de Amsterdã.
Filósofo e investidor
Embora tenha frequentado boas escolas na infância e juventude, Descartes não era de berço rico. Para sustentar-se no começo de sua vida adulta e patrocinar suas viagens pela Europa, ele se alistou no exército de Maurício de Nassau em 1618, no qual permaneceu até 1625.
Sua estadia em Amsterdã coincidiu com o surgimento e o estouro da primeira bolha da economia moderna, que ficou conhecida como “A Mania das Tulipas” ou “Tulipamania”, cujo auge e derrocada ocorreu entre 1634 e 1637, conforme relatado no livro “As Dez Maiores Bolhas de Todos os Tempos”, de Tiago Reis, lançado em inglês durante o primeiro semestre de 2020.
Não há registros de que Descartes tenha “quebrado” com a Bolha da Tulipa. Pelo contrário, de acordo com Max Gunther, autor de “Os Axiomas de Zurique”, o filósofo usava seus conhecimentos matemáticos para garantir parte de sua renda em jogos de azar na cidade de Paris, para onde ia com certa frequência:
“Na primeira metade do século XVII, existiam umas poucas e mal organizadas bolsas de valores e de mercadorias. Descartes deixou-se fascinar pelo grande e ativo mercado de Amsterdã.”
Gunther cita Descartes em seu livro de 1985, para fundamentar o que ele nomeia como “O Décimo Grande Axioma: do Consenso. Fuja da opinião da maioria. Provavelmente está errada”. Na abertura do texto, o autor lhe tece elogios – exceto quando o chama de especulador:
“René Descartes foi campeão mundial da dúvida. Teimosamente, recusava-se a acreditar em qualquer coisa até que a tivesse verificado pessoalmente. Este foi um dos traços que fez dele um bem sucedido jogador-especulador.”
Para outro autor sobre o mercado financeiro, porém, René descartes era uma espécie de patrono não eleito dos investidores. Em “Ações & Precauções”, pioneiro e hoje raro livro publicado no Brasil, em 1973, Gerard Haentzschel dedica um capítulo inteiro ao pensamento cartesiano. De “O que Descartes realmente quis dizer”, destacamos:
“Certo estava o Mestre do Método, na sua alegoria: substituímos o bom-senso pela presunção; pela suspeita ou suposição gratuita; pela pretensão! E fazemos isso com tanta naturalidade que acabamos acreditando que esses frágeis substitutos são sinônimos de discernimento.” E continua: “Tanto quanto se pode ter convicção, é certo que o mercado de ações oferece, presentemente, as melhores oportunidades de investimento. Únicas, mesmo. Contanto que a aplicação de recursos seja presidida por cautela e critérios sadios.”
Noções de pensamento prático
Neste ponto chegamos até um dos grandes investidores de todos os tempos, simplesmente o mentor de Warren Buffett que, junto com ele, comanda a Berkshire Hathaway há décadas, obtendo excelentes resultados por meio do Value Investing e do Buy and Hold. Estamos nos referindo à Charlie Munger, que reputamos como discípulo de René Descartes.
Em 1996, Charlie Munger fez um discurso que ficou conhecido como “Pensamento prático sobre o pensamento prático” no qual ele compartilhou cinco noções simples para a resolução de problemas – e, consequentemente, para a análise de empresas.
O primeiro passo, para Munger, é simplificar: “geralmente é melhor simplificar os problemas, decidindo primeiro as grandes perguntas acéfalas”. Isto coincide com o segundo preceito lógico do método de Descartes, sobre dividir as dificuldades em parcelas “solúveis”.
Em seguida Munger exalta a fluência numérica. Esta “noção útil imita a conclusão de Galileu de que a realidade científica geralmente é revelada apenas pela matemática, como se a matemática fosse a linguagem de Deus. A atitude de Galileu também funciona bem na vida prática bagunçada. Sem fluência numérica, na parte da vida em que a maioria de nós habita, você é como um homem de uma perna só em uma competição de chute no traseiro”.
Galileu era contemporâneo de Descartes, favorável ao uso da matemática para analisar questões de qualquer natureza, em confluência com seu terceiro preceito lógico, afastando aspectos emocionais nas tomadas de decisões.
Descartes pregava que uma questão deveria ser resolvida com o encadeamento de suas partes, das mais simples para as mais complexas. Neste sentido Munger propõe a inversão do problema:
“Não basta pensar nos problemas adiante. Você também deve pensar ao contrário, como o homem rude que queria saber onde ele iria morrer, para nunca mais ir para lá. De fato, muitos problemas não podem ser resolvidos adiante. E é por isso que o grande algebrista Carl Jacobi costumava dizer: “inverter, sempre inverter”. E por que Pitágoras pensou ao contrário para provar que a raiz quadrada de dois era um número irracional.”
Em complemento, Munger recomenda estudar o básico:
“A melhor e mais prática sabedoria é a sabedoria acadêmica elementar. Mas há uma qualificação extremamente importante: você deve pensar de maneira multidisciplinar. Você deve usar rotineiramente todos os conceitos fáceis de aprender do curso de calouros em todas as disciplinas básicas. Onde ideias básicas servirão, sua solução de problemas não deve ser limitada, pois a academia e muitas burocracias de negócios são limitadas, por extrema balcanização em disciplinas e subdisciplinas, com fortes tabus contra qualquer empreendimento fora do território designado.
Se, em seu pensamento, você confiar nos outros, muitas vezes através da compra de aconselhamento profissional, sempre que estiver fora de um pequeno território, sofrerá muita calamidade.”
Neste ponto, Munger está alinhado com o primeiro preceito lógico do método proposto por Descartes, sobre duvidar de tudo que é apresentado como “a priori”. O próprio Descartes não refuta a importância do ensino convencional, mas desenvolve sua obra feito um autodidata – o que, de certo modo, os investidores devem ser. Por fim, Munger cita os “Efeitos Lollapalooza” quando grandes ideias se combinam: “efeitos realmente grandes, efeitos de lollapalooza, geralmente virão apenas de grandes combinações de fatores.
Por exemplo, a tuberculose foi domada, pelo menos por um longo tempo, apenas pelo uso combinado de rotina em cada caso de três drogas diferentes. E outros efeitos de lollapalooza, como o voo de um avião, seguem um padrão semelhante.”
A combinação de grandes ideias só é possível quando o quarto preceito lógico do método cartesiano está atendido, sobre revisões gerais de cada aspecto da questão, a ponto de eliminar todas as omissões.
Munger e a moral proposta por Descartes
Além do mais, reproduzimos algumas das declarações de Munger que se combinam com parte das premissas da “moral provisória” de Descartes, para embasar nossa tese de que ele é adepto do cartesianismo.
Munger em conformidade com a segunda premissa, sobre ser firme numa decisão e não hesitar:
“Se você não está disposto a reagir com tranquilidade a uma queda de 50% ou mais, por duas ou três vezes em um século, você não se encaixa no perfil de um acionista e, portanto, merece o resultado medíocre que eventualmente apresentará diante da comparação com pessoas que possuem um temperamento capaz de atravessar normalmente estas flutuações do mercado.”
Munger em conformidade com a quarta premissa, sobre dedicar-se a uma escolha de vida:
“Passe cada dia tentando ser um pouco mais sábio do que você era quando acordou. Desempenhe seus trabalhos bem e de maneira fiel. Sistematicamente você avançará, mas não necessariamente a passos largos. De qualquer forma, você construirá disciplina ao se preparar para os passos largos. Persevere, dando um passo de cada vez, dia após dia. No final, a maioria das pessoas consegue o que merece.”
Como demostramos, investimentos em mercado financeiro e filosofia estão mais próximos do que poderíamos imaginar, desde os primórdios da Bolsa de Amsterdã, no século XVII. Vale registrar que Warren Buffett e Charlie Munger são leitores vorazes de livros e entusiastas da matemática elementar, muito amiga também dos filósofos. De certo modo, René Descartes é a síntese deste paradigma. Você não perde por estudar seus escritos. Seja cartesiano com seus investimentos: abuse da razão e contenha suas emoções. Conte com gente alinhada com tais princípios.
*Jean Tosetto Arquiteto e urbanista formado pela FAU PUC de Campinas, tem escritório próprio desde 1999. Autor e editor de livros, é adepto do Value Investing. Colabora com a Suno Research desde janeiro de 2017.