O preço quase 25 vezes mais alto do que o pago pela Natura pode parecer elevado, mas uma análise rápida dos números do negócio deixa evidente que o grupo francês não agiu por impulso
Com um aperto de mão e a frase “prazer, eu sou invisível”, Nicolas Hieronimus se apresentava aos clientes fazendo graça de si mesmo. O francês, aos 23 anos, tinha acabado de entrar na L’Oréal, em 1987, como gerente de marketing de um spray para cabelos batizado de “Invisível”. Trinta e seis anos depois, a invisibilidade ficou definitivamente para trás. Sua presença não poderia ser mais notada no escritório da multinacional no Rio de Janeiro, numa quinta-feira de abril. Funcionários iam de um lado a outro e se intercalavam em dezenas de reuniões para apresentar números de cada categoria de produto. Foi a primeira visita de Hieronimus à subsidiária brasileira depois de assumir o comando da maior empresa de beleza do mundo, em 2021. Ele trouxe consigo os demais diretores do alto comando. Viajar aos mais diferentes lugares é parte da rotina numa empresa presente em 150 países e que multiplicou por algumas dezenas seu faturamento por meio de aquisições. Das 36 marcas da L’Oréal, só três são originalmente criadas pelo grupo. A viagem ao Brasil marca a chegada de mais uma ao portfólio, a Aesop, vendida pela brasileira Natura &Co por 2,5 bilhões de dólares.
A marca de cosméticos de luxo estava no grupo brasileiro havia dez anos. O preço quase 25 vezes mais alto do que o pago pela Natura pode parecer elevado, mas uma análise rápida dos números do negócio deixa evidente que o grupo francês não agiu por impulso ao colocar a mão no bolso para fazer a maior aquisição de sua história. Foi uma estratégia bem calculada. Em 2012, a Aesop faturou 30 milhões de dólares. Dez anos depois, a receita somou 540 milhões de dólares, com o negócio respondendo pela maior margem de rentabilidade da Natura &Co, registrando crescimento acelerado e entrando no desejado mercado de consumo chinês. Por isso, não falta confiança à L’Oréal para fazer a marca australiana dobrar de tamanho.
“Essa é uma marca de meio bilhão de dólares, mas acreditamos ter potencial de ser bilionária, seja em dólares, seja em euros. Quando isso vai acontecer? Bom, isso é confidencial e, honestamente, vai levar um tempo para sabermos, mas é uma marca de potencial enorme. Está só começando sua aventura na China e é unissex, o que também é importante porque dobra o tamanho do público-alvo”, defende Nicolas Hieronimus em entrevista exclusiva à EXAME. O parisiense substituiu Jean-Paul Agon, que completou 65 anos, idade-limite pelo estatuto da empresa. Agon comandou o grupo francês por 15 anos e hoje é presidente do conselho de administração. Cria da casa, Hieronimus é apenas o sexto a assumir a direção da companhia centenária e foi preparado para isso. Desde 2017 atuava como braço direito de Agon no cargo de vice-CEO, hoje ocupado por Barbara Lavernos.
Em seus mais de 30 anos de L’Oréal, Hieronimus comandou desde operações de marcas populares, como a de xampus Garnier, até o portfólio de luxo do grupo, que reúne, entre outras, Lancôme, Prada e Biotherm, e do qual a Aesop fará parte se a aquisição for aprovada por órgãos reguladores de todo o mundo. A expectativa do executivo é que os reguladores antitruste aprovem a transação sem a aplicação de restrições até o segundo semestre do ano. “A partir daí, vamos começar a desenvolver o trabalho em conjunto com a equipe atual da Aesop, que é um ótimo time”, afirma, reforçando que Michael O’Keeffe permanecerá à frente da marca. Entre executivos e analistas, o alto comando da australiana estava insatisfeito com os bônus dentro da Natura &Co. O crescimento acelerado e a rentabilidade alta — a margem chegou à casa de 21% em 2022 — acabaram ofuscados pela deterioração dos negócios de Avon Internacional e The Body Shop, que pesaram sobre a última linha do balanço da holding brasileira e a levaram a um prejuízo de 2,86 bilhões de reais no ano passado.
O francês traça alguns planos iniciais para colocar a Aesop no caminho dos bilhões. O primeiro é explorar a recente chegada ao gigantesco mercado chinês, segundo maior do mundo (atrás apenas dos Estados Unidos) e que deverá movimentar 98 bilhões de dólares neste ano, pelas estimativas da consultoria de consumo Euromonitor. Desde o fim de 2022, a Aesop tem duas de suas mais de 300 lojas no país asiático, mas o interesse pela marca é bastante expressivo, de acordo com Hieronimus. Por lá, a empresa já opera com outras marcas de luxo de seu portfólio, como a Lancôme. Outro plano passa pela exploração do travel retail, como é chamado o varejo de duty free em aeroportos, no qual a maior parte das marcas premium de beleza e cosméticos está posicionada. Também estão no horizonte a expansão das operações de varejo online e o avanço da Aesop no mercado americano e mesmo no brasileiro, quarto maior do mundo e hoje com apenas uma loja da marca.
Para a maior empresa do mundo, ficar de fora de uma tendência não é uma opção — e a Aesop é um símbolo dessa ambição. “Quando novas tendências de beleza aparecem, a L’Oréal sempre considera se já possui uma marca que possa ser reposicionada para capturar essa nova tendência. Se não, avalia se precisa lançar uma novata ou comprar uma marca para atender essa nova demanda”, observa Bruno Monteyne, analista sênior para o setor de bens de consumo da casa de análise Bernstein Research. A Aesop combina um público consumidor jovem a uma experiência de compra de alto nível de serviço. São atributos que levaram outros grupos a tentar fechar o negócio, como LVMH e Shiseido. Incentivaram também a Natura &Co a tentar manter alguma participação na empresa, segundo pessoas próximas às negociações. Tudo, porém, foi superado pela proposta de Hieronimus e seu time. “A L’Oréal claramente considera essa tendência da Aesop importante o suficiente e vê potencial de crescimento futuro para decidir essa compra. Isso é muito semelhante às aquisições anteriores”, afirma Monteyne. Primeira compra da gestão de Hieronimus, a Aesop deve traçar caminhos similares aos de outras marcas, como a Kiehl’s, comprada em 2000, e a CeraVe, em 2017, até então a mais alta da história: 1,7 bilhão de dólares. Especializada em dermocosméticos, a CeraVe tinha, combinada a outras duas marcas, receita de 168 milhões de dólares na época da compra e, cinco anos depois, alcançou 1 bilhão de dólares em vendas.
Na contramão
O setor de beleza costuma ser resiliente. Já é famoso o “efeito batom”, uma teoria de Leonard Lauder, da marca premium de maquiagem e cosméticos Estée Lauder: mesmo em meio a uma crise econômica, as vendas de batons crescem, como uma forma de se mimar e elevar a autoestima em um momento difícil. Na pandemia de covid-19, com máscaras cobrindo os lábios e videoconferências evidenciando imperfeições, o batom deu lugar a cremes para as mãos e a produtos de cuidados para a pele do rosto. Passado o isolamento, alguns hábitos da rotina de cuidados ficaram e se somaram à demanda retraída pela maquiagem. Em 2022, a indústria de beleza faturou 565 bilhões de dólares em todo o mundo, 12% mais do que um ano antes, de acordo com a base de dados Statista. Mas os últimos meses têm sido especialmente difíceis. A inflação global chegou a patamares havia anos não vistos, reflexo das consequências da pandemia e da guerra entre Rússia e Ucrânia. A Natura que o diga.
Mais exposta à Europa desde a compra da Avon, a Natura &Co sentiu as dores do crescimento em meio ao cenário macroeconômico mais complexo, que também pegou em cheio as operações da marca britânica The Body Shop, que pertencia à L’Oréal e foi comprada pelo grupo brasileiro em 2017. Tanto a Avon Internacional quanto a The Body Shop recuaram em vendas em 2022 e no primeiro trimestre deste ano, quando caíram 12,8% e 16,5%, respectivamente. As margens, porém, melhoraram, refletindo a reestruturação proposta com a troca de Roberto Marques por Fábio Barbosa como CEO do grupo brasileiro, em junho do ano passado. “É óbvio que tínhamos de fazer uma reestruturação financeira. Alguém falou: ‘Mas vendeu o que tem crescimento?’ E queria que eu vendesse o quê? Tinha de vender a operação que exercia impacto em nosso número. Hoje, fazendo projeção de caixa, a gente fica extremamente confortável”, disse Barbosa após a divulgação dos resultados do primeiro trimestre. O problema de liquidez, que era o mais “agudo”, segundo ele, passará a ser resolvido assim que houver o pagamento: a dívida, em torno de 9 bilhões de reais, vai ser sanada com os recursos da venda, e o foco ficará ainda mais concentrado em voltar o grupo aos trilhos da rentabilidade. Mas o desafio de melhorar os números da Avon e fazer a The Body Shop ser de novo um negócio em crescimento não é pequeno, o que pode levar a Natura mais uma vez a buscar o mercado. A venda da britânica, porém, Barbosa diz não estar no radar.
Entre 2020 e 2021, a empresa de cosméticos Coty também precisou fazer um movimento parecido com o do grupo brasileiro e enxugar a estrutura, além de ter anunciado uma nova CEO ainda em 2020, a ex-L’Oréal Sue Nabi. Depois de concluir a venda da marca de produtos para os cabelos Wella para a empresa de private equity KKR, a dona de marcas como Max Factor, Kylie Cosmetics e as brasileiras Monange e Risqué conseguiu avançar em sua reestruturação e voltar a crescer. Ao fim do terceiro trimestre fiscal, encerrado em março deste ano, a empresa, criada em 1904 e de origem francesa, viu suas vendas crescer 9%. O lucro líquido contábil do período ficou 108% maior, em 105 milhões de dólares. “Iniciamos a aceleração de crescimento multiestratégico do nosso negócio de cuidados com a pele, incluindo lançamentos, atualizações de merchandising, expansão de distribuição e eventos de relações públicas”, disse a executiva a analistas e investidores em teleconferência sobre os últimos resultados. Esse avanço, porém, é menor do que o da concorrente. De janeiro a março, a L’Oréal vendeu 13% mais do que no mesmo período do ano anterior, somando uma receita de 10,38 bilhões de euros (11,24 bilhões de dólares).
Há algumas razões para os melhores números da L’Oréal. Um deles, segundo Bruno Monteyne, da Bernstein Research, está na gestão conservadora do balanço.
“Por serem cautelosos na condução de seus negócios, se houver algum problema, eles têm segurança e gordura suficientes no sistema para absorver a dor de curto prazo”Bruno Monteyne
Outro fator está no tamanho, na presença global e na força de distribuição. “A L’Oréal é muito diversificada: está em muitas regiões, tem muita variedade de produtos e muitos preços. Portanto, se uma parte do mundo se sair mal, pode decidir rapidamente realocar seus recursos em outras áreas. Ela só pode fazer isso porque tem vários grandes motores de crescimento independentes. A maioria das empresas tem apenas um ou dois”, afirma o analista. Com uma reabertura econômica inconsistente, a China, por exemplo, é um dos pontos fracos do balanço da empresa, mas o avanço em países emergentes, como México e Brasil, tem compensado.
DNA brasileiro
Há ainda outra frente em que a empresa se diferencia de seus concorrentes, diz Hieronimus: no investimento em pesquisa e desenvolvimento de produtos e serviços. “Se me perguntarem a receita do nosso sucesso, são várias. A primeira é que só fazemos itens de beleza, cobrimos todas as suas necessidades. Por isso, somos muito focados em inovação para trazer produtos de qualidade superior. É um fator de escolha para o cliente. Por isso, todos os anos, a companhia investe globalmente 1 bilhão de euros para o desenvolvimento de novos produtos, que são estudados e desenvolvidos em seis centros de inovação regionais (há mais um na França, país-sede), sendo um deles no Rio de Janeiro, com mais de 140 pesquisadores. Não é mera coincidência. O país é praticamente um laboratório a céu aberto. É o único no mundo onde são encontrados 55 dos 66 tons de pele mapeados pelo grupo e todos os oito tipos de cabelo.
Do centro de inovação brasileiro, na Ilha do Bom Jesus, no Rio, já saíram produtos como a linha Elseve Cachos Longos dos Sonhos, com seis etapas para o cuidado do cabelo cacheado, e 11 fórmulas de protetor solar no último ano. “Muitas das tecnologias pensadas, desenvolvidas e testadas aqui com consumidores brasileiros servem de base e inspiração a nossos outros centros de pesquisa ao redor do mundo para desenvolvermos produtos e lançamentos estratégicos em vários países, especialmente na América Latina e em mercados emergentes”, conta Jean-Marc Ascione, diretor de pesquisa e inovação da L’Oréal para a América Latina. Há 60 anos operando no país, além de desenvolver produtos exclusivos, a empresa comprou, em 2015, a brasileira Niely.
Com o Brasil disputando com a Índia o quarto lugar no mercado global de beleza, a L’Oréal vê no país um canal de crescimento. Em 2022, as vendas foram 15% maiores, depois de já terem saltado 18% em 2021. Mas ainda há o que capturar. Executivos que acompanham o setor ouvidos pela EXAME dizem que a empresa detém cerca de 15% de participação do mercado global, mas algo em torno de 8,5% do mercado nacional. Em 2020, essa fatia era menor, de 6,4%, pelos números da Euromonitor. “Ainda não é nosso quarto maior mercado. Então temos muito espaço para avançar. No Brasil estamos crescendo dois dígitos há três anos”, diz o CEO da L’Oréal. No momento em que você lê esta reportagem, Hieronimus pode estar em seu escritório na sede da empresa, na França, em um centro de distribuição no México ou visitando lojas de suas marcas na China. Para a ambição do gigante de continuar crescendo, uma oportunidade ao estilo Aesop pode estar na próxima escala.
Fonte: Exame