Artigo de Eduardo Muniz Machado Cavalcanti e Luciana Marques Vieira da Silva Oliveira*
A regra da não cumulatividade
A preocupação é de que o sistema deve ser baseado na simplicidade e certeza do tributo a pagar
A reforma tributária em curso no Congresso Nacional, fundamentada nas PEC’s 110/2019 e 45/2019, ora suspensa em meio à pandemia de Covid-19, entre seus objetivos, visa à unificação da tributação sobre o consumo em um único tributo sobre o valor agregado, atualmente sujeito a distintas competências federativas (PIS/Cofins, IPI, ICMS e ISSQN), cujas diretrizes apontam para uma alíquota majorada e um longo período de transição de coexistência de regimes.
O protagonismo, de ambos os projetos, sustenta-se, entre outros fundamentos, na imposição de um regime não cumulativo amplo, migrando dos diferentes e complexos regimes atualmente vigentes, que, em maior ou menor medida, permitem a apropriação do crédito físico, especialmente do PIS/Cofins e do ICMS, para o chamado crédito financeiro integral. Com isso, como regra, todo e qualquer insumo adquirido pela empresa passa a ser aproveitado para fins de creditamento, independente se integrado ou não ao processo produtivo.
Trata-se de um discurso muito bem construído de alinhamento com os países desenvolvidos, ao menos pelas vozes que o defendem. De fato, a imensa maioria dos países membros da OCDE (Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico) adotam a tributação sobre valor agregado no consumo de bens e serviços, denominado IVA (imposto sobre valor agregado) ou VAT (value added tax), cujo vetor principal é a regra da não cumulatividade.
A grande exceção a esse tipo de tributação fica por conta dos Estados Unidos, que apesar de serem uma das maiores economias mundiais, optaram pela tributação cumulativa incidente sobre a venda final ao consumidor, o sales tax.
Contudo, é preciso que se diga que a importação de teorias tributárias, baseadas em modelos econômicos que consideram condições de mercados ideais ou lastreadas em realidades diversas do Brasil, deve ser vista sempre com muita ressalva. Mais importante que uma receita ideal é uma execução eficaz. É na eficiência que a reforma tributária precisa focar.
Diante da realidade tributária brasileira, nos perguntamos se, de fato, a técnica da não cumulatividade ampla promoverá maior eficiência e justiça tributária. Será capaz de resolver os maiores problemas tributários brasileiros como a alta complexidade de conformidade tributária, os altos custos de fiscalização, a alta litigiosidade e a insegurança jurídica? Será um tributo compatível com a atual economia digital e com setores cuja cadeia de produção não é longa o suficiente para gerar créditos que compensem o aumento de alíquota de um tributo não cumulativo?
Por isso, sem desconhecer das vantagens que a regra da não cumulatividade ampla pode proporcionar, a partir do conceito de crédito financeiro, subsistem reflexões com a finalidade de contribuir com o debate, especialmente por compreender que na proposição de políticas públicas fiscais é indispensável examinar não apenas o custo econômico do tributo, ou sua estrutura ótima de incidência, mas, e sobretudo, os custos sociais, haja vista afetar o custo real dos tributos no Brasil, muitas vezes ocultos e silenciosos.
Com este viés de abordagem, e, especialmente pela forma objetiva do presente tratamento dado ao assunto, no quadro abaixo apontam-se vantagens da regra da não cumulatividade sustentadas pela doutrina confrontadas com a realidade brasileira e as expectativas de respostas no plano fiscal de nosso sistema.
Deste contexto, e do qual deve sair uma reforma tributária, fatores devem, necessariamente, fazer parte da equação decisória acerca do formato de tributação, entre os quais os de que: i) o Brasil é considerado o país mais complexo em termos de compliance tributário[1]; ii) o contencioso judicial e administrativo tributário do Brasil é um dos mais congestionados e custosos do mundo[2]; a iii) falência escancarada do sistema de cobrança judicial[3]; e, ainda, iv) a migração cada vez mais acelerada do modelo tradicional de negócios para o digital.
Como frequentemente alerta o ex-secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, pensar na reforma tributária material, sem enfrentar mazelas sistêmicas de nossa tributação, como o burocratismo, a indeterminação conceitual e o processo tributário[4], talvez exija, em curto prazo, uma nova parametrização de acordo com as diretrizes impostas pelos desafios econômicos do século 21, especialmente o e-commerce.
O comércio digital é a nova realidade econômica e sua expansão em tempos de Covid-19 foi exponencial. É preciso que a reforma tributária esteja conectada aos desafios da vanguarda tecnológica para a definição das bases tributáveis e do modo de cobrar os tributos, com redução de custos administrativos para contribuintes e Fiscos.
Por isso a preocupação é de que o sistema deve ser baseado na simplicidade e certeza do tributo a pagar, além da ampla e disseminada utilização de métodos de tecnologia para facilitação e indução ao pagamento na fonte, sobretudo a partir da identificação no elo da cadeia que concentre a maior capacidade de informações, sem descuidar da conformação de práticas legislativas que tenham a pretensão de desestimular litígios fisco versus contribuintes. São temas que devem, sob nosso olhar, juntar-se à pauta da reforma tributária que se avizinha.
[1] Dados disponíveis em: <https://endeavor.org.br/ambiente/doing-business-2020/?gclid=EAIaIQobChMI0teHi_TW6QIVTQmRCh2yrgSBEAAYASAAEgKIPfD_BwE>.
[2] Disponível em: <https://www.etco.org.br/noticias/contencioso-tributario-brasileiro-ultrapassa-50-do-pib/>.
[3] Relatório Justiça em números CNJ, disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/08/justica_em_numeros20190919.pdf>.
[4] Disponível em: <https://www.etco.org.br/noticias/everardo-maciel-explica-por-que-nao-acredita-em-projetos-que-sugerem-refundar-nosso-sistema-de-impostos/>.
Referências da Tabela nº 01 – MOREIRA, André Mendes. Não-cumulatividade tributária no Brasil e no mundo: origens, conceito e pressupostos. In: Sistema Tributário Brasileiro e a Crise Atual – VI Congresso Nacional de Estudos Tributários. CARVALHO, Paulo de Barros e SOUZA, Priscila de. São Paulo: Noeses/IBET, 2009, pp. 47-88.
Eduardo Muniz Machado* Advogado e consultor jurídico. Mestre em Direito Público pela UFPE. Obteve o Diploma de Estudos Avançados da União Europeia pela USAL/ES. Procurador do DF.
Luciana Marques Vieira da Silva Oliveira* Procuradora do Distrito Federal, mestranda do Mestrado Profissional em Direito Tributário da FGV Direito SP, especialista em Planejamento Tributário pela Universidade de Brasília (UnB), e Especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET).