Três meses depois de o mercado financeiro viver dias de pânico diante da propagação da doença causada pelo novo coronavírus, as bolsas de valores do mundo inteiro têm se recuperado – com altos e baixos – nas últimas semanas.
Em maio, o índice Ibovespa, um dos principais indicadores de desempenho da bolsa brasileira, não só voltou a crescer, como registrou uma das maiores altas do mundo.
Um levantamento feito pela coordenadora do Centro de Estudos em Finanças da Fundação Getulio Vargas (FGV-EAESP), Claudia Yoshinaga, apontou avanço de 8,6% no período, o mais elevado entre 17 índices.
A tendência de alta se manteve em junho e, apesar de ter registrado algumas quedas nos últimos dias, o índice, que chegou a quase 60 mil pontos no fim de março, tem se aproximado novamente dos 100 mil pontos – um recorde batido pela primeira vez apenas em março de 2019.
Em paralelo, a economia “real”, depois de viver em abril o que se desenha como o pior mês da crise, começa a mostrar os primeiros sinais de estabilização.
Ainda assim, o desempenho dos indicadores está longe de inspirar otimismo: as projeções para a queda no Produto Interno Bruto (PIB) no segundo trimestre estão na casa de 10%, há quase 13 milhões de desempregados e os pedidos de falência cresceram 30% em maio.
Entenda, em quatro pontos, o que explica esse descolamento.
1. Mais dinheiro disponível…
Governos de diferentes países têm injetado um grande volume de recursos na economia na tentativa de amortecer o tombo da atividade decorrente da pandemia de covid-19.
Em março, os Estados Unidos anunciaram o maior pacote de estímulos de sua história – o equivalente a US$ 2,2 trilhões, que serão utilizados para pagar benefícios às famílias americanas afetadas pela crise, aos desempregados, para financiar um programa de crédito para pequenas empresas e para reforçar os cofres dos governos locais e os repasses a hospitais e ao sistema de saúde.
Em paralelo, o Federal Reserve (Fed), o banco central americano, anunciou uma série de medidas que também aumentam a disponibilidade de capital na economia, assim como as autoridades monetárias de países europeus.
Ao todo, esses estímulos já somam mais de US$ 17 trilhões, conforme destacou em relatório o estrategista-chefe da XP Investimentos, Fernando Ferreira.
Ainda que não seja o objetivo inicial dessas políticas, parte desses recursos acaba migrando para as bolsas de valores.
Foi o que aconteceu, por exemplo, durante a crise financeira de 2008.
“Esse lançamento de liquidez totalmente descolado da atividade tende a migrar para a bolsa”, diz Renato Chaim, economista da Parallaxis.
2. …em um mundo de juros baixos
No caso atual, esse movimento é potencializado pelo fato de que os juros estão em mínimas históricas em diversos países. O Brasil, que chegou a ter uma taxa básica de 14,25% até 2016, hoje vê a Selic na mínima histórica, 2,25%.
Assim, quem busca um retorno maior tem que sair da renda fixa e partir para modalidades mais arriscadas, como as ações, diz o economista da Parallaxis.
Em um artigo de opinião publicado no última dia 10 de junho, o editor de mercados da Bloomberg, John Authers, escreveu que a recuperação do principal índice da bolsa brasileira se deve a um maior apetite por risco nos Estados Unidos – uma correlação visível inclusive em outros momentos da história.
E ironizou: “O Brasil é o segundo país com pior surto de covid no mundo, comparável aos EUA quando estavam no pico. É claro que a moeda brasileira e o mercado de ações estão se recuperando”.
Essa maior propensão a risco aparece aparece nos dados da bolsa de valores brasileira. Os números sobre o fluxo de investimentos da B3 do acumulado entre 1 e 19 de junho mostram que o investidor estrangeiro foi quem mais colocou dinheiro na bolsa, um saldo líquido de R$ 3,2 bilhões.
Os investidores individuais, que aumentaram sua participação nas negociações nos últimos anos, também foram às compras, com um saldo líquido positivo de R$ 1 bilhão nesse período.
Os investidores institucionais, por sua vez, venderam mais do que compraram – um saldo líquido negativo de US$ 3,9 bilhões.
3. Influência do cenário externo
A coordenadora do Centro de Estudos em Finanças da FGV-EAESP, Claudia Yoshinaga, concorda que boa parte do desempenho da bolsa no Brasil é reflexo de notícias que vêm de fora.
Um dos sintomas dessa dependência é a forte volatilidade que marca o Ibovespa – e que atingiu seus maiores níveis desde o ano 2000 no último mês de março, durante a pandemia, conforme a série acompanhada pela pesquisadora.
Mais recentemente, a expectativa em relação à reabertura da economia na Europa e os números mais positivos em relação à China acabaram “contaminando” os mercados com um certo otimismo – o que eventualmente chegou ao Brasil, apesar de os dados internos sobre a pandemia não permitirem comemorações.
No última dia 9 de junho, o Bank of America Merrill Lynch revisou sua estimativa para o Ibovespa de 76 mil pontos para 100 mil pontos para o final de 2020 – citando a maior disponibilidade global de liquidez e os juros baixos.
A XP, por sua vez, elevou sua estimativa de 94 mil pontos para 112 mil pontos, ressaltando que os preços de ações brasileiras estavam entre os que mais retraíram em março – o que explicaria parte da retomada atual.
“Por conta do cenário de incerteza (já que a Ciência ainda não tem todas as respostas em relação ao vírus), a gente vê essa reação às vezes exagerada (das bolsas) às notícias boas e ruins”, avalia Yoshinaga.
Nos últimos dias, os índices voltaram a recuar diante da possibilidade de que uma segunda onda da pandemia paralise novamente economias que ensaiavam uma reabertura – um aviso, na avaliação da pesquisadora da FGV, de que é preciso ser cauteloso diante de um possível otimismo exacerbado.
Essa é também a avaliação de Renato Chaim, economista da Parallaxis, que acredita que o índice da bolsa brasileira deve voltar a recuar e encerrar o ano em um patamar bem inferior ao atual.
Além do fato de que o Brasil tem grande dificuldade para controlar a pandemia e que a economia já vinha em marcha lenta antes da crise sanitária, ele acrescenta a possibilidade de aprofundamento da crise política e institucional no segundo semestre, à medida que os dados sobre a covid-19 no país melhorem.
4. Bolsas de valores não são um retrato da economia
Uma quarta razão para o descolamento entre o desempenho das bolsas de valores em diversos países e a economia “real” é o fato de que um não é retrato do outro.
É o que apontam, por exemplo, as trajetórias do PIB dos Estados Unidos e do S&P 500, um dos principais índices de ações do mercado americano. Em um intervalo de quase 90 anos, de 1930 a 2019, os dois simplesmente não conversaram.
A análise, feita pelo colunista da Bloomberg Nir Kaissar, mostrou que as duas variáveis não têm correlação uma com a outra – e que, assim, não é possível explicar o desempenho de um a partir do outro.
“O mercado de ações não é barômetro de saúde de um país – política, social e nem mesmo econômica”, escreveu.
A única coisa que ele reflete, em sua opinião, é o consenso de investidores a respeito da saúde financeira e da possibilidade de geração de lucros das empresas de capital aberto.
Um universo que, no caso EUA, engloba cerca de 4,4 mil empresas. No caso do Brasil, que tem um mercado de capitais bem mais modesto, o total é bem menor: são cerca de 420 empresas listadas.
Fonte: BBC Brasil