Com amigos ou colegas de trabalho, o presidente da Latam Brasil, Jerome Cadier, se vê obrigado a responder sempre à mesma pergunta: “A Azul vai comprar a Latam Brasil?”.
Desde que o grupo chileno-brasileiro Latam aderiu à lei de falência dos Estados Unidos (Chapter 11, uma espécie de recuperação judicial) em maio de 2020, seguido dois meses depois pela Latam Brasil, começaram as especulações sobre a necessidade de fusão ou aquisição no setor para a sobrevivência das companhias aéreas, um dos mercados mais atingidos pela pandemia.
O presidente da Azul, John Rodgerson, tem sido contundente em afirmar que vai avançar nas conversas com credores da rival para ficar com a empresa. Uma reportagem do Wall Street Journal há cerca de dez dias disse que a Azul estaria aberta para comprar 100% da Latam e depois vender as operações fora do Brasil.
Já o chileno La Tercera disse no início do mês que o grupo Latam vai precisar de novos sócios para manter a operação de pé após sair do Chapter 11, o que deve demandar uma injeção de capital de ao menos US$ 4 bilhões.
A chilena apresenta no próximo dia 15 de setembro seu plano de recuperação judicial aos credores, que têm até 8 de novembro para dizer se aceitam.
“A Latam Brasil não está à venda”, diz Cadier, em entrevista à Folha. “Os argumentos da Azul para tentar defender uma eventual consolidação não se sustentam em 30 segundos de análise”, afirma. “O mercado brasileiro de aviação é o quinto maior do mundo. Falar que ele não comporta três grandes competidores é no mínimo um contrassenso”. Para ele, haverá aumento do preço das passagens em uma eventual fusão.
Cadier aposta que a Latam Brasil vai sair da recuperação judicial mais forte do que entrou, explorando novos destinos de turismo nacionais, para compensar em parte a queda das viagens corporativas. “Até o fim do ano, vamos chegar a 49 destinos no país, contra 44 antes da pandemia”.
Com o avanço da vacinação e a queda no número de óbitos, estamos vendo a retomada gradual do turismo. Como a Latam Brasil vem observando este movimento?
A recuperação mês a mês dos voos domésticos vem se mostrando gradual e estável. Nas duas primeiras semanas de agosto, estamos voando com 77% da oferta doméstica de assentos [ASK] em relação a agosto de 2019. Os destinos turísticos estão recuperando bem a demanda. No Nordeste, por exemplo, estamos voando com 93% do que era antes da pandemia. Mas o mercado de ponte aérea está mais lento: apresenta 63% da oferta de dois anos atrás. Mas já estamos olhando o fim do ano com praticamente 100% nos voos domésticos em relação ao período pré-pandemia. Nos voos internacionais, esperamos uma abertura dos Estados Unidos, o maior mercado.
Quanto o mercado corporativo representa das vendas?
Cerca de 35% da receita antes da pandemia. Hoje está em 22%. Mas sempre tivemos dificuldade para saber, com exatidão, o motivo da viagem do passageiro. Estes dados são do mercado corporativo puro, em que a gente tem certeza que se trata de uma viagem a trabalho.
Como reverter essa queda no corporativo?
Dependemos de uma mudança de comportamento das empresas. Não há muito o que a companhia aérea possa fazer neste momento, além de proporcionar segurança aos passageiros. ?Uma pesquisa recente [da JCDecaux, com passageiros do Aeroporto de Guarulhos] apontou que 87% das pessoas estão super tranquilas em viajar. Mas muitas empresas ainda não voltaram aos escritórios, o pessoal continua remoto. Isso deve perdurar até o primeiro trimestre do ano que vem.
Mas existe a mudança de hábito adotada por muitos profissionais e empresas, de fazer reuniões e negócios por videoconferência.
Eu concordo. A gente não imagina que esse percentual de viagens corporativas volte ao índice pré-pandemia. Mas vai estabilizar em um patamar menor, talvez mais próximo de 30%. Vamos perder entre 10% e 20% dos passageiros dos voos corporativos, do pessoal que vai substituir as viagens por tecnologia.
O passageiro vai voltar, mas em uma composição de mais turismo e menos corporativo. Um sinal dessa tendência é que vamos ter cinco novos destinos domésticos: Juazeiro do Norte (CE), Jericoacoara (CE), Vitória da Conquista (BA), Comandatuba (BA) e Petrolina (PE). Já é uma composição com muito mais turista do que corporativo. Com isso, a Latam Brasil vai atender 49 destinos, acima dos 44 atendidos antes da pandemia.
Vocês acreditam numa demanda maior do turismo regional?
Sim. Temos que buscar algum legado positivo desta pandemia. Uma delas é a maior ênfase no turismo doméstico. A gente vai ter o brasileiro olhando mais os destinos nacionais, onde ele se sente mais seguro, porque não tem o risco de fechamento de fronteira, nem exposição ao câmbio.
Qual a sua expectativa para o mercado aéreo em 2022?
É positiva. Nos voos domésticos, esperamos transportar mais passageiros em 2022 do que em 2019. Antes da pandemia, os voos internacionais respondiam por 33% da receita e os domésticos por 67%. Hoje esta relação está em 12% e 88%, respectivamente. Quando as fronteiras internacionais forem abertas, vamos observar um excesso, um pico de demanda. Até o ponto em que veremos uma estabilização, assim como no caso do corporativo.
Em 2022, a Latam Brasil continuará uma empresa do grupo Latam ou terá passado ao controle da Azul?
A Latam Brasil não está à venda. Não interessa para o grupo Latam se desfazer da maior operação que ele tem, que responde por um pouco mais da metade da sua receita. Não faz sentido para o grupo.
É engraçado ver os argumentos usados pela Azul para tentar defender essa eventual consolidação, porque eles não se sustentam em 30 segundos de análise. O Brasil é um grande mercado de aviação, o quinto maior do mundo —depois de China, Estados Unidos, Rússia e Índia. Falar que o Brasil não consegue sustentar três companhias aéreas, precisaria ter duas, é um contrassenso. Existe tamanho, sim, para sustentar mais, e não menos empresas.
Pouco tempo atrás, quando houve a tentativa de aquisição da Avianca [que teve falência decretada em junho de 2020], a própria Azul foi absolutamente contra a consolidação no mercado brasileiro. Dizia que era um absurdo a Avianca ser comprada pela Gol ou pela Latam. A própria Azul entrou no mercado brasileiro em 2008 sustentando o argumento de que era preciso mais concorrência.
Um dos argumentos recentes que eu ouvi, a favor da venda da Latam, foi hilário: “A Azul vai trazer benefícios para o mercado brasileiro”. Não tenho dúvidas que a Azul trouxe benefícios para o Brasil. Mas a que preço? A média de preço da Azul é de R$ 434, segundo a Anac. O preço médio da Latam e da Gol, que competem muito entre si, é de R$ 346 e R$ 341, respectivamente. Ou seja, a Azul cobra 25% a mais. O que poderia acontecer se houvesse uma fusão: o preço da Azul vai baixar para o da Latam? Ou o da Latam vai subir para o da Azul?
Mas existem analistas do setor que dizem que a aquisição da Latam Brasil pela Azul seria positiva, inclusive para o preço da passagem aérea, porque haveria mais promoção.
Para quem investe em ações da Azul, talvez seja bom uma consolidação. Mas é por que o preço da passagem vai cair? Ou por que a margem da Azul vai aumentar? Eu acho que os analistas fizeram um trabalho muito superficial —tanto no que eles acham que é benéfico para o país, quanto à viabilidade do negócio.
Duvido muito que o Cade [Conselho Administrativo de Defesa Econômica] aprove a fusão entre Latam Brasil e Azul. ?Porque se o órgão está preocupado com a consolidação no mercado de aluguel de carros, com o negócio entre Localiza e Unidas, que tem barreiras de entrada baixas —afinal, é muito mais fácil você abrir uma locadora, do que uma companhia aérea—, como eles veriam uma consolidação com cerca de 70% do mercado na mão de um só concorrente? [Segundo os dados mais recentes da Anac – Agência Nacional de Aviação Civil, em julho, a fatia da Latam Brasil na demanda de passageiros, medida em RPK, chegou a 33,2% e, a da Azul, em 32,7%; Gol teve 33,5%].
O que a gente quer é um mercado competitivo, em que as companhias briguem agressivamente, como sempre fizeram. Este é o benefício para o brasileiro e para o país. Não uma consolidação em rotas monopólicas, como a Azul faz: em 70% das suas rotas, ela voa sozinha. É isso o que a gente tem que atacar, não diminuir a concorrência.
De maneira geral, o público não gosta de consolidação, justamente por temer aumento de preços.
Se você olhar as reações nas mídias sociais e os comentários a respeito do que o presidente da Azul fala, vai conferir que os passageiros não veem isso com bons olhos. Porque se houvesse alguma empresa correndo risco de desaparecer, você poderia defender uma fusão. Mas a Latam Brasil está se recuperando: vai voar para mais destinos que voava antes da pandemia, está contratando 2.000 pessoas até o final do ano e vai sair do Chapter 11 com a sua dívida renegociada. Não existe um risco de falência, pelo contrário!
O Chapter 11 está fazendo a Latam sair deste processo muito mais agressiva, eficiente e competitiva do que era antes. Porque eu renegociei tudo. Eu consegui diminuir meu custo, me fiz flexível de um jeito que não era antes. Esse é o benefício da recuperação judicial. A Azul sabe que a Latam Brasil vai sair extremamente competitiva. Ela quer comprar para limitar a concorrência.
Como foi para a companhia aérea enfrentar esta pandemia, ainda mais em processo de recuperação judicial?
O mais delicado foi a crise das cinco primeiras semanas. Foi um momento de aperto de caixa. A venda parou, o dinheiro não entrava, mas as despesas não paravam. Eu continuava com uma saída de caixa forte, pagando combustível, aluguel, mas a entrada sumiu. Porque ninguém mais comprava passagem. E o mercado de crédito fechou. Ninguém queria emprestar, porque ninguém sabia o que ia acontecer. Este foi o momento mais duro.
O grupo tomou a decisão de entrar no Chapter 11 em maio do ano passado. O Brasil veio um pouco depois, em 9 de julho. A gente já via que essa crise iria ser longa e, a recuperação, lenta. E iria voltar de forma diferente —mais turista, menos corporativo, preço médio mais baixo. Eu aproveitei a crise para me reestruturar e sair competitivo.
Demitimos 6.000 funcionários desde o início da pandemia, cerca de 30% do efetivo total. Começamos a crise com cerca de 21 mil, chegamos a 15 mil, e devemos fechar o ano com uns 17 mil, se tudo correr bem. A maioria desses 2.000 colaboradores que serão contratados até o fim do ano são ex-funcionários nossos, principalmente tripulantes —pilotos e comissários.
Mesmo sem passar ao controle da Azul, o grupo Latam poderia vir a ser comprado por uma grande aérea estrangeira. É uma alternativa no radar?
O grupo Latam já tem um tamanho muito relevante, é a maior companhia da América Latina. Antes da pandemia, era três vezes o tamanho do segundo colocado, a Avianca. Acho difícil ter ganho de escala combinando a Latam com outra companhia grande. A nossa aposta desde sempre foi em parcerias comerciais.
Temos uma aliança com a Delta, uma companhia aérea gigante nos Estados Unidos. Por meio de uma joint venture, operamos em conjunto rotas entre América do Sul e Estados Unidos. Eu aposto neste formato, é viável financeiramente. Não requer capital e funciona. Para nós, este é o futuro.
Anos atrás, a Latam tinha um plano com o grupo IAG —que reúne as companhias British Airways e Iberia, e também com a American Airlines. Mas, com a American, a parceria não foi aprovada no Chile. Em 2019, estabelecemos então uma parceria com a Delta. Ainda não substituímos o potencial parceiro europeu no lugar da IAG. Mas, assim que a pandemia estiver sob controle, em um futuro próximo, eu espero voltar a negociar com um parceiro europeu. Aí teremos América Latina, América do Norte e Europa integradas em um grande conjunto de companhias aéreas.
Falando mais uma vez da Azul, a empresa está entrando no mercado de “carros elétricos voadores”, uma aeronave que não polui e faz curtas distâncias, compatíveis às de um helicóptero. Este tipo de aeronave é o futuro da aviação?
É inegável que o futuro não tem combustível fóssil. Só não sei se será elétrico para a aviação grande, de voos mais longos, de maior densidade. Até o momento, não existe uma solução elétrica para aviões de grande porte, por conta do peso das baterias versus a distância voada.
Temos alternativas sendo desenvolvidas, como a do hidrogênio e outras menos poluentes. Mas é difícil a relação peso versus potência para um avião comercial como Airbus e Boeing. Eu acredito, porém, que a nossa geração ainda vai ver combustível não fóssil para a aviação comercial.
Voos curtos interessam para a Latam?
Hoje não. A Latam opera grandes artérias. O grupo conecta grandes cidades em uma distância muito eficiente. Do Rio a São Paulo, por exemplo, são quase 500 quilômetros em pouco mais de uma hora. É difícil ser mais eficiente que um Boeing ou Airbus. Mas se você sai do interior de São Paulo e vai para a Barra da Tijuca, talvez você tenha um número menor de passageiros que queira ficar em São Paulo. Para operações assim, com maior granularidade, menor demanda, aeronaves como essa funcionam, mas não vemos isso como uma solução interessante.
Qual a grande lição que você tira desses 18 meses tão difíceis para a aviação comercial?
Foram várias lições, destaco duas. Uma delas é a necessidade de ter uma grande dose de flexibilidade. As companhias aéreas sempre se programaram com vários anos de antecedência, compravam um avião para receber em cinco anos. Havia contratos de longo prazo. A pandemia colocou tudo isso de pernas para o ar. A gente teve que aprender a viver na incerteza do que vai acontecer no mês que vem, se a fronteira vai fechar, se vai piorar a quantidade de infectados. A empresa teve que aprender a ser flexível, em todas as suas frentes. De negociar ou não contratos, de contratar ou não pessoas. Isso não existia antes.
Eu tive momentos em que me perguntei: o que vai acontecer? Será que tem saída? O setor de turismo foi, claramente, o que mais sofreu. Mas foi impressionante a energia da equipe. Mesmo tendo que demitir 30% do efetivo no Brasil, continuei conectado, motivado, trabalhando com energia remotamente, por causa da equipe. E foi essa conexão que me fez acreditar em uma saída que acabou vindo. O amor que as pessoas da aviação têm pelo setor é muito característico. Eu já trabalhei em outros setores antes e nunca vi algo assim. Aqui as pessoas são apaixonadas pelo que elas fazem e pela empresa.
Raio-X Grupo Latam
Fundação: 2012
Funcionários: 28 mil
Operações domésticas: Brasil, Chile, Colômbia, Equador e Peru
Receita: US$ 888,7 milhões
Prejuízo: US$ 357,7 milhões
dados do segundo trimestre 2021
Fonte: Folha