Artigo de Eduardo L’Hotellier*
Há anos venho defendendo a proposta de uma Renda Básica Universal. Acredito que essa medida seja essencial e pode possibilitar que a população evolua em termos sociais, com acesso inicial ao básico para se viver. Com a chegada da pandemia do novo coronavírus, vemos esse assunto voltando à pauta das discussões políticas e sociais. A questão aqui é: a renda básica veio agora para ficar?
A única certeza que temos nesse momento de pandemia é que o novo coronavírus chegou acelerando muitas medidas que estavam até então somente no âmbito da discussão. Vemos isso ocorrendo gradativamente na transformação digital, por exemplo, com empresas de setores mais tradicionais acelerando o processo de digitalização para se adequarem às novas necessidades impostas pelo confinamento iniciado em maio.
O mesmo se deu com a questão de Renda Básica. O alto índice de desemprego dos últimos anos levou grande parte da população brasileira a atuar na economia autônoma, fortalecendo, dessa forma, a proporção de profissionais não formalizados no país. Apesar de autônomos, esses profissionais têm conseguido ao longo dos anos garantir uma renda mensal satisfatória para garantir o sustento deles e de suas famílias.
Muitos profissionais mudaram de vida depois que passaram a atuar como autônomos. Já tive a oportunidade de conhecer histórias de sucesso inspiradoras de profissionais que se reinventaram num momento de crise. E, agora, estão novamente diante de um novo desafio, o de se reinventarem durante uma pandemia que assola todo o país e vem gerando uma redução na contratação de serviços, especialmente em setores de eventos; serviços para casa; e reformas e reparos.
Apesar de terem uma renda mensal satisfatória, esses profissionais têm um giro de caixa de cerca de um mês e dependem da economia operando 100% para continuar a atender clientes e gerar mais serviço e renda. O anúncio da liberação do coronavoucher, a renda básica liberada pelo governo federal durante três meses de pandemia, chegou como um alento para esses profissionais, que agora têm acesso ao básico.
Em momentos como o que estamos passando, devido à pandemia do novo coronavírus, nos colocamos a refletir ainda mais sobre a importância de criar soluções que dão suporte para as pessoas conseguirem seguir a vida com dignidade e se desenvolverem, de forma a explorarem o próprio potencial e contribuir para as atividades econômicas do país. Isso só é possível se todo cidadão tiver uma renda como apoio financeiro, e não apenas em caráter de excepcionalidade.
Em 1516 com Thomas More, em seu livro intitulado Utopia, já tínhamos a primeira referência que se tem notícia sobre uma espécie de Renda Básica. A passagem do livro em questão relata um diálogo entre um viajante e um bispo sobre a não eficiência da pena de morte e como seria muito mais eficaz prover a todos algum meio de subsistência. Um amigo de Thomas More, Juan Luis Vives, inspirou-se dez anos mais tarde por esta passagem e apresentou a primeira proposta de renda mínima para uma cidade belga – a qual, a título de curiosidade, mais tarde foi implementada.
Ao longo dos anos, independente do espectro político, diversos sociólogos, economistas, políticos, defenderam formas de renda básica ou do imposto de renda negativo – que parte do mesmo princípio. Entre eles, destaco Milton Friedman que popularizou o conceito de imposto de renda negativo por meio de seu livro Capitalism and Freedom (1962).
Diferente da renda básica universal, que seria para todos os cidadãos, o conceito, como o próprio nome já infere, prevê um auxílio às pessoas que estejam abaixo de uma linha de rendimentos estipulada. Enquanto que as pessoas que estão acima desta linha, pagam impostos de forma similar ao que ocorre atualmente.
Citando uma referência um pouco mais recente sobre o assunto, Mark Zuckerberg, em 2017, fez um discurso em sua formatura na Universidade de Harvard e surpreendeu alunos, professores e o mundo todo com uma mensagem igualitária.
Na visão dele, não basta as pessoas terem vontade de realizar algo, empreender, investir num sonho. Todo mundo precisa ter possibilidades para lutar e encontrar um propósito de vida. “Possibilidade é aquele sentimento de que você é parte de algo maior do que você mesmo, que você é necessário e que você tem algo para o qual trabalhar. É o que cria felicidade real“, disse.
Com uma posição clara a favor da Renda Básica Universal, como exemplo, ele citou o próprio caso. Se não tivesse recebido apoio dos pais, nunca teria largado os estudos em Harvard para empreender no Facebook e a maior plataforma social do mundo não existiria.
A Renda Básica, mencionada por Mark, nada mais é do que a garantia de uma quantia mensal a ser paga a todo e qualquer cidadão do país. Para sustentar a posição, ele citou como é injusto que milhões de pessoas que poderiam alcançar resultados incríveis não o fazem por não terem essa segurança e reforçou que o mundo perde muito com isso.
Assim como ele, eu também tive boas oportunidades de um bom estudo, ter um pequeno investimento inicial e, principalmente, o apoio da minha família, caso o meu negócio não tivesse sucesso. Mas muitas das mentes criativas não contam com a mesma sorte. Por isso, projetos como a Renda Básica Universal são importantes e estão sendo sendo cada vez mais discutidos atualmente. Estas discussões têm surgido mais e mais devido ao cenário urgente de crise global e, nesse momento, deixa mais evidente o problema que já poderíamos, ao menos, ter diminuído se houvesse uma renda mínima para sobrevivência das pessoas e da economia.
A evolução da humanidade é uma função de quantas pessoas têm pensado sobre determinado assunto e estudando sobre ele. Se há mais pessoas refletindo sobre um tema, consequentemente, terá maior evolução. Anos atrás, por exemplo, apenas homens tinham a oportunidade de estudar e trabalhar fora de casa. Imagina o quanto teríamos evoluído se as mulheres tivessem tido as mesmas oportunidades desde sempre. Hoje teríamos o dobro de pessoas produzindo coisas novas. Da mesma forma, podemos pensar em relação ao desenvolvimento de medicamentos para o momento atual.
Muitos dos problemas de hoje já teriam sido solucionados se toda capacidade humana fosse utilizada. A Renda Básica Universal é justamente uma defesa da capacidade humana. A humanidade já evoluiu muito nos últimos anos e precisamos promover subsídios para que continue evoluindo.
Na realidade brasileira, a aplicação de um sistema como a Renda Básica poderia substituir, por exemplo, subsídios como o seguro-desemprego, que se tornou burocrático. Em entrevista recente, em uma análise sobre o grave cenário econômico e social do Brasil – intensificado pela pandemia, a nobel de economia Esther Duflo, também defendeu os programas de transferência de renda como uma possível solução na diminuição da ampla desigualdade existente no país. Segundo Duflo, fornecer ao menos o que chama de uma “Renda Ultrabásica Universal” seria a maneira mais eficaz de transformar a sociedade, tanto no nível individual como no nível econômico – mesmo no cenário anterior à pandemia.
Aí, você leitor, pode me questionar sobre o financiamento. A Renda Básica substituiria alguns elementos da sociedade, como um investimento social de bem-estar. É comprovado que a pobreza custa muito caro por vários motivos. Tomando como base esse ponto, é possível dizer que um investimento como esse seria muito mais econômico para acabar com a pobreza do que combater os problemas causados por ela.
Portanto, em meio a todo esse cenário que estamos vivendo, é importante enxergar quais pontos podem nos fazer mais fortes como sociedade. Devemos parar para refletir, mais do que nunca, e nos desenvolver como seres humanos. Para isso, acredito e sonho que um dia tudo isso se torne um direito acessível a todos.
*Eduardo L’Hotellier é fundador e CEO do GetNinjas.