É preciso parar de subsidiar setores despreparados para sobreviver diante de eventos climáticos
Governos do mundo todo preparam, neste momento, pacotes de estímulo para recuperação do choque provocado pela pandemia. Esse é protocolo para o momento seguinte à resposta à emergência e já foi aplicado à crise financeira global de 2008, ao choque do petróleo na década de 1970 e a outras situações anteriores.
Assim como nos protocolos médicos de reabertura após o isolamento social, são necessárias regras transparentes e pactuadas com a sociedade para reativação econômica. Engana-se, porém, quem pensa que temos um “template” para usar como guia neste momento.
Não temos.
Temos alguns bons exemplos, que podem nos valer como referência. Um deles é a corajosa decisão do Brasil de apostar no Pró-Álcool no final dos anos 1970 como resposta aos choques do petróleo. Esse programa ampliou a resiliência econômica nacional à volatilidade de preços do mineral.
Permitiu também ganhos para a saúde pública e nos colocou em posição de vantagem competitiva, ambiental e econômica, em relação ao mundo.
Outros são propostas de Reconstrução Verde ou “green deal” em franco desenvolvimento na Coreia do Sul, China e União Europeia, calcadas em recuperação combinada com a descarbonização da economia.
Aqui e agora, é preciso ter a mesma coragem e ousar. Não basta copiar e colar o que estão fazendo as economias mais avançadas. Temos que trilhar nosso próprio caminho e saltar etapas para retomar o caminho sustentável.
Vivemos uma situação sem precedentes, em que a pandemia está combinada com outras crises de igual urgência que se interpõe pedindo uma resposta conjunta. Ameaças autoritárias, desigualdades gritantes, desmatamento desenfreado e emergência climática.
Quem tentar ignorar uma ou quaisquer dessas dimensões na resposta vai claramente “enxugar gelo”. Uma transição justa, democrática e para maior resiliência frente às crises futuras é necessária.
Mas o que seria isso?
Não dá para aguardar a democracia produzir melhores lideranças para resolver nossos problemas. Como sociedade, temos o dever de pactuar princípios comuns, isolar defeitos e construir soluções republicanas, agora.
A maior crise no horizonte é a causada pela mudança do clima. Sabemos o que precisamos fazer: em dez anos, reduzir pela metade as emissões globais; nos 20 anos depois disso, descarbonizar totalmente a economia. O Acordo de Paris é o mapa a ser seguido.
No Brasil, significa acabar com o desmatamento até no máximo 2030, e ampliar o uso de fontes renováveis de energia, que são abundantes e mais baratas que as fontes fósseis.
Não adiantaria falar apenas de desmatamento ilegal, pois alguém poderia imaginar que bastaria dar legalidade ao que hoje se pratica criminosamente, como falsa maneira de alcançar essa meta. Um filme que já conhecemos, que tem como roteiro a concessão de anistia aos criminosos que invadem terras públicas e desmatam ilegalmente na certeza da impunidade que virá com o próximo Refis Ambiental, na forma de uma revisão do Código Florestal, de uma medida provisória ou projeto de lei com título “bem intencionado”.
Os desmatadores têm servido de vetores de transmissão do novo coronavírus às comunidades remotas. O problema é agudo na região da Amazônia e não pode ser deixado para depois. Como resposta, temos que dar força total à fiscalização com urgência e criar alternativas econômicas robustas, como o açaí, que tem rendimento dez vezes superior à da soja por hectare, segundo estudo da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
Demonstrar resultados de controle do desmatamento é fundamental para retomar a credibilidade da economia brasileira e atrair investimentos privados. É preciso controlar de vez as queimadas e roubo de madeira e terras das florestas públicas. Na pandemia, neste ano, e nos anos subsequentes.
A recuperação da economia depende da retomada do consumo no curto prazo, mas crescimento sustentável após a pandemia depende da retomada do investimento, que já se encontrava no nível mais baixo da série histórica antes do Covid19.
Pequenos passos não são suficientes. Tampouco medidas incrementais ou um plano “ambiental”. Precisamos dar um salto qualitativo no destino dado pelo Estado aos recursos dos contribuintes. Precisamos definir um novo ciclo de prioridades, projetos produtivos e de infraestrutura alinhados às necessidades atuais, deste século e do seguinte.
É esperado o socorro estatal a setores cambaleantes, como a aviação civil, e em especial às indústrias com potencial de geração de muitos empregos. Mas a grande oportunidade está nas novas indústrias, nos novos setores da economia que podem criar milhões de postos de trabalho em atividades menos poluentes.
Há uma oportunidade de modernização do parque produtivo, de adoção de novas tecnologias, de qualificação dos novos profissionais, que não pode ser desperdiçada. Não podemos desperdiçar os recursos do contribuinte salvando setores que estão fadados a sucumbir ao longo do século, alavancando ativos que vão encalhar por falta de demanda, ignorar os alertas dos analistas de risco e os compromissos assumidos pelos investidores de descarbonizar seus portfólios.
Por fim, precisamos reduzir as distorções dos mercados, eliminar incentivos para atividades devastadoras e poluentes, parar de subsidiar com os escassos recursos públicos setores despreparados para sobreviver diante de eventos climáticos extremos.
Mas seria muito frio tratar disso tudo apenas em “economês”, considerando que, no Brasil, a pandemia tem tido impacto desproporcional em indígenas e negros e que a saída dela pode reforçar problemas estruturais que temos, em especial a desigualdade.
Se o processo de transição não for justo, tampouco será justo seu resultado.
A transição desse momento difícil para um novo normal requer coragem para reparar a dívida social do passado e criar um novo pacto social para o futuro.