Se fosse uma série de televisão, a relação entre a Uber e os seus motoristas cadastrados no país renderia muitos capítulos.
Os novos fatos acrescentados à trama envolvem o aumento de corridas canceladas, o banimento de motoristas e até o uso suspeito de um gabinete de vereador de São Paulo para a confecção de ações judiciais contra a empresa.
Para entender essa série, é preciso olhar para os capítulos anteriores com foco no consumidor, que vem sendo muito afetado com as falhas na prestação do serviço.
Os capítulos conhecidos remontam aos impactos causados pela crise econômica aprofundada pela pandemia de Covid-19, esta a responsável por ruir o desempenho dos apps de transporte em escala global.
Por aqui, os motoristas do serviço ainda enfrentam o preço galopante da gasolina que, em algumas regiões do país, atingiu o teto máximo de R$ 7 o litro. Diante desse patamar de oferta do combustível, os profissionais passaram a fazer uma “Escolha de Sofia”.
As corridas, para serem aceitas, precisam compensar as perdas e, nessa queda de braço, muitas delas vem caindo na “malha fina do cancelamento”. Os motoristas alegam que os trajetos que fazem entre o local onde aceitaram a corrida e o endereço dos clientes são arcados por eles.
Por isso, cada novo pedido de corrida tem sido milimetricamente analisado, do início ao fim, para saber se renderá lucro ao motorista. “O motorista passou a selecionar as corridas. Ele abre o pedido e verifica onde o passageiro está antes de aceitar. Tem corridas que o motorista está a 10 km do passageiro, ele faz o trajeto e, no final, só ganha a tarifa mínima de R$ 5,25”, afirma Eduardo Lima de Souza, dirigente da Amasp-SP (Associação dos Motoristas de Aplicativos em São Paulo).
Para a Uber, o que vem ocorrendo é “uma prática de cancelar diversas viagens em sequência logo após terem sido aceitas”.
Essa atitude, segundo a empresa, tem prejudicado “todos que usam a plataforma porque, de um lado, impede que outros motoristas parceiros gerem renda atendendo as mesmas solicitações de viagens canceladas, e, por outro, deixam os usuários esperando mais tempo ou até desistindo da solicitação”.
Reportagem do InfoMoney mostrou clientes em São Paulo sob apuros à espera dos carros da Uber. Um dos passageiros disse, em entrevista, que teve um pedido de corrida cancelado por 12 vezes consecutivas.
Após o aceite, os passageiros também afirmam que tem sido comum enviar súplicas aos motoristas para que o transporte não seja rejeitado —isso tem sido muito recorrente, sobretudo, entre as passageiras que circulam pelas cidades à noite.
Em outro capítulo dessa história, a Uber diz ter feito seu dever de casa. Colocou em prática um reajuste para compensar as perdas financeiras de seus cerca de 1 milhão de colaboradores no Brasil na crise.
Os novos valores repassados aos motoristas, segundo a empresa, tiveram um acréscimo de até 35%.
Para a Amasp paulista, o teto máximo do repasse é dificilmente atingido porque envolve variáveis como o horário, o local, o tipo de corrida e o passageiro. A entidade também já afirmou que o reajuste já começou defasado porque não cobre as perdas com as altas dos combustíveis e da inflação.
Leia perguntas e respostas sobre os problemas recentes da operação da Uber no país:
Por que a Uber baniu um grupo de motoristas recentemente?
A Uber nunca havia divulgado o número de motoristas e entregadores banidos de seu sistema desde que iniciou as operações no Brasil, em 2014.
O número veio à tona, em setembro, quando a Amasp afirmou que os profissionais estavam no alvo de uma retaliação devido aos constantes cancelamentos de corridas.
O aplicativo disse que baniu 1.600 motoristas e entregadores —o número representa 0,16% do total de 1 milhão de colaboradores vinculados à plataforma.
Em nota enviada ao InfoMoney, a Uber afirmou que os profissionais tirados de sua base apresentaram de maneira recorrente comportamentos de cancelamento de corridas que prejudicam “intencionalmente o funcionamento da plataforma”.
“Com isso, atrapalham outros motoristas e usuários que apenas desejam gerar renda ou se deslocar”, afirmou a empresa.
Quais são os critérios para expulsar motoristas vinculados ao aplicativo?
A Uber diz que é constante a retirada de motoristas pegos em falhas. Em seu código de conduta, a empresa deixa claro, por exemplo, que motoristas envolvidos em atos de violência, grosseria e discriminação contra passageiros, além dos com baixa avaliação dada pela comunidade, correm o risco de expulsão.
O cancelamento premeditado de corridas é classificado pela empresa como uma possível fraude e pode motivar banimentos. “Cancelamentos excessivos ou para fins de fraude representam abuso do recurso e configuram mau uso da plataforma, pois atrapalham o seu funcionamento e prejudicam intencionalmente a experiência dos demais usuários e motoristas”, diz, por nota, a Uber.
A empresa afirma que só divulgou o total de 1.600 contas excluídas de sua plataforma para rebater dados da Amasp —a entidade havia informado que o app teria expulsado ao menos 15 mil colaboradores de sua base em setembro.
Os 1.600 profissionais banidos, segundo a empresa, foram identificados por cancelar corridas de forma excessiva. A Uber encaminhou ao InfoMoney um exemplo sobre um ex-Uber. O profissional saiu da plataforma porque cancelou 2.014 das 2.163 viagens aceitas em 30 dias.
Os motoristas podem cancelar as corridas?
Segundo a Uber, os motoristas são profissionais independentes e, assim como os usuários, podem cancelar viagens quando julgarem necessário. Mas, para o app, o abuso no cancelamento de viagens é diferente “da liberdade que ele tem de recusar solicitações”.
A empresa diz também que a conexão entre parceiro e usuário —quando nome, modelo e placa do carro são compartilhados e o usuário recebe a confirmação de que o motorista está a caminho —só ocorre depois de o motorista ter conferido as informações da solicitação (tempo, distância, destino, entre outras variáveis) e decidido aceitar a realização da viagem.
Como o aplicativo monitora os motoristas que mais cancelam as corridas?
O aplicativo diz manter equipes e tecnologias apropriadas que revisam constantemente as viagens e os cancelamentos para identificar suspeitas de violação ao código de boas práticas da empresa.
Caso as suspeitas de infração sejam confirmadas, diz o aplicativo, o passo seguinte é banir as contas envolvidas.
Por que os usuários têm levado mais tempo para conseguir uma corrida?
A Uber diz que a sua operação vem passando por uma grande demanda de viagens nas últimas semanas por causa do avanço da campanha de vacinação contra a Covid-19 e a retomada gradual das atividades econômicas.
Por causa disso, segundo a empresa, os usuários estão tendo de esperar mais tempo por uma viagem porque, especialmente, nos horários de pico, há momentos em que existem mais solicitações do que motoristas parceiros disponíveis.
O que o aplicativo faz para manter a oferta de motoristas no rush?
A Uber afirma que, nos horários mais demandados, aplica a tarifa dinâmica automaticamente.
Segundo a empresa, a ferramenta é eficiente porque, de um lado, faz alguns usuários adiarem as suas viagens à espera de um preço menor e, de outro, incentiva que mais motoristas parceiros se desloquem para atender uma determinada região, de forma a reequilibrar a relação oferta-demanda no mercado.
Reportagem recente do InfoMoney mostrou, porém, que a tarifa dinâmica era outra queixa dos motoristas. Eles relataram que as taxas do mecanismo não estão tão altas como eram antes.
Se a demanda pelo serviço tem sido maior que a quantidade de motoristas, o que tem sido feito?
O app diz que tem reforçado campanhas de indicação de motoristas, nas quais os profissionais que já dirigem com a plataforma ganham uma recompensa quando novos parceiros realizam certo número de viagens.
Os critérios da promoção variam de cidade para cidade: em São Paulo, por exemplo, uma indicação concluída pode resultar numa recompensa de até R$ 750.
Existe também, segundo a empresa, um programa de mentoria em que o motorista com mais tempo de casa compartilha dicas com os que estão começando na função.
O que foi feito para aliviar os motoristas da alta de preço dos combustíveis?
Com o aumento constante dos combustíveis, a Uber diz que vem intensificando esforços para ajudar os motoristas parceiros a reduzirem seus gastos, com parcerias que oferecem desconto em combustíveis, por exemplo, assim como tem feito revisões e reajustado os ganhos dos parceiros, em diversas cidades, além de lançar promoções com ganhos adicionais em viagens de curta distância.
O que o gabinete de um vereador na cidade de São Paulo tem a ver com os desafios enfrentados pelo aplicativo?
A Uber ingressou com uma denúncia recente ao Ministério Público de São Paulo contra o vereador Marlon Farias da Luz, o Marlon da Uber (Patriotas). Na queixa, o vereador é acusado de montar em seu gabinete, na Câmara Municipal de SP, um departamento para prestar serviços jurídicos aos motoristas que tiveram suas contas desativadas pelos aplicativos, incluindo a Uber.
A prática, segundo a denúncia, recai no crime de improbidade administrativa, uma vez que configura um desvio de função e o uso de dinheiro público para fins particulares.
A reportagem do InfoMoney apurou que uma centena de ações, com textos idênticos que questionam os desligamentos de motoristas da Uber, foram parar na Justiça. O que se investiga, no momento, é se as petições foram redigidas pelos assessores do vereador.
Marlon se notabilizou ao contar enquanto ainda era motorista de app os desafios da função em um canal do YouTube e acabou eleito vereador em 2020.
O caso está sob investigação na Promotoria de Justiça do Patrimônio Público e Social da Capital. O inquérito, segundo a Promotoria, está em fase inicial.
Por meio de sua assessoria de imprensa, o vereador disse que as acusações da Uber são “totalmente desprovidas de fundamento”. “Infelizmente, de forma canalha, a empresa Uber vem desferindo uma série de ataques e tentando impedir que o vereador prossiga defendendo a categoria”, segundo trecho da nota.
Marlon afirmou, ainda, que desde o começo de seu mandato vem expondo as injustiça que a empresa comete contra os motoristas de aplicativos, tentando ajudar de todas as formas possíveis, inclusive, apresentando e aprovando o projeto de lei 158/21, que garante a ampla defesa dos motoristas quando são banidos de forma injusta das plataformas de aplicativos.
“Em mais uma tentativa desesperada de obstruir o direito dos motoristas, a Uber faz uma acusação sobre uma suposta improbidade administrativa que claramente não ocorreu”, afirmou o vereador.
Sobre o assunto, a Uber afirmou, por nota, que está à disposição “para contribuir com a investigação iniciada pelo Ministério Público de São Paulo”.
Fonte: Infomoney