Pela primeira vez em um século, quase não há plataformas de petróleo funcionando na Venezuela. Os poços que já exploraram as maiores reservas brutas do mundo estão abandonados ou queimando gases tóxicos, que lançam um brilho laranja sobre as cidades petrolíferas. As refinarias que uma vez processaram petróleo para exportação são gigantes enferrujados, vazando óleo bruto que escurece a costa e dá à água um brilho oleoso. A escassez de combustível paralisou o país. Nos postos de gasolina, as filas chegam a ter quilômetros de extensão.
O colossal setor petrolífero da Venezuela, que moldou o país e o mercado internacional de energia por um século, chegou a uma parada quase total, com a produção reduzida a um gotejamento graças a anos de má gestão e sanções dos EUA. O colapso está gerando uma economia destruída e um ambiente devastado e, segundo muitos analistas, encerrando a era de potência energética da Venezuela.
“Os dias da Venezuela como estado petrolífero se foram”, disse Risa Grais-Targow, analista do Eurasia Group, uma consultoria de risco político.
O país, que há uma década era o maior produtor da América Latina, ganhando cerca de US$ 90 bilhões por ano com as exportações de petróleo, deve arrecadar cerca de US$ 2,3 bilhões até o fim deste ano – menos do que o montante agregado que os migrantes venezuelanos que fugiram da devastação econômica enviarão de volta para casa para sustentar a família, de acordo com Pilar Navarro, economista venezuelana de Caracas.
A produção é a mais baixa em quase um século, depois que as sanções forçaram a maioria das companhias petrolíferas a parar de perfurar ou comprar petróleo venezuelano – e analistas alertam que mesmo esse gotejamento pode secar em breve.
“Sem perfuração, sem empresas de serviços e sem dinheiro, é muito difícil manter até mesmo os níveis atuais de produção. Se a situação política no país não mudar, ela pode chegar a zero”, afirmou David Voght, chefe da IPD Latin America, consultoria de petróleo.
O declínio desfigurou um país que há apenas uma década rivalizava com os Estados Unidos por influência regional. Também está desvendando uma cultura nacional definida pelo petróleo, uma fonte de dinheiro que antes parecia interminável; financiou obras públicas monumentais e corrupção generalizada, bolsas de estudos generosas e viagens de compras a Miami, na Flórida.
A escassez de gasolina levou a um surto de dezenas de protestos diários na maioria dos estados venezuelanos nas últimas semanas. Na capital, Caracas, os carregamentos periódicos de combustível do Irã, pagos com o que resta das reservas de ouro do país, garantem uma aparência de normalidade durante algumas semanas a cada vez. Mas, no campo, os moradores desafiaram a quarentena da pandemia para bloquear estradas, e entraram em confronto com a polícia desesperadas pelo mínimo de combustível do qual precisam para sobreviver.
Em todas as cidades petrolíferas da Venezuela, o óleo bruto pegajoso que uma vez forneceu empregos e mobilidade social está envenenando a subsistência dos moradores. Em Cabimas, cidade às margens do Lago Maracaibo que já foi um centro de produção para os prolíficos campos de petróleo da região, o petróleo bruto que vaza de poços subaquáticos e oleodutos abandonados reveste os caranguejos que ex-trabalhadores do setor tiram do lago com as mãos enegrecidas.
Quando chove, o óleo que escorreu para o sistema de esgoto transborda por bueiros e ralos, correndo com a água da chuva pelas ruas, manchando casas e enchendo a cidade com seu fedor. A desolação de Cabimas marca a rápida queda de uma cidade que há apenas uma década era uma das mais ricas da Venezuela.
Durante os anos do boom, a PDVSA, a companhia petrolífera estatal, encheu os moradores de cidades petrolíferas, como Cabimas, com benefícios, incluindo comida grátis, acampamentos de verão e distribuição de brinquedos no Natal, além de ter construído hospitais e escolas.
Agora, as dezenas de milhares de trabalhadores da empresa falida desmontam as instalações petrolíferas para conseguir sucata e vendem seus macacões característicos, estampados com o logotipo da empresa, para pagar suas despesas.
O fim do papel central do petróleo na economia venezuelana é uma reversão traumática para uma nação que, em muitos aspectos, definiu o significado de petroestado.
Depois que grandes reservas foram descobertas perto do Lago Maracaibo em 1914, trabalhadores do petróleo dos Estados Unidos chegaram ao país. Ajudaram a construir muitas cidades venezuelanas e a incutir no país um amor por beisebol, uísque e carrões, diferenciando para sempre a nação de suas vizinhas sul-americanas.
Como força motriz na fundação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo em 1960, a Venezuela ajudou as nações árabes a assumir o controle de sua riqueza petrolífera, moldando o mercado global de energia e a ordem geopolítica das próximas décadas.
Mesmo naqueles dias de riqueza, o proeminente ministro do petróleo da Venezuela, Juan Pablo Pérez Alfonzo, alertou que havia armadilhas para a súbita riqueza petrolífera: ela poderia levar a uma dívida excessiva e à destruição das indústrias tradicionais. “É o excremento do diabo. Estamos nos afogando no excremento do diabo”, declarou Perez Alfonzo.
Nos anos seguintes, apesar da abundante receita petrolífera, a Venezuela enfrentou uma montanha-russa de dívidas recorrentes e crises financeiras. A riqueza também não contribuiu para diminuir a corrupção ou a desigualdade, e quando um ex-paraquedista, Hugo Chávez, apareceu no cenário nacional na década de 1990 prometendo uma revolução que colocaria o petróleo da Venezuela para trabalhar para sua maioria pobre, ele cativou a nação.
Logo depois de ter sido eleito presidente em 1998, Chávez usou a respeitada companhia petrolífera estatal do país em seu programa de desenvolvimento radical. Demitiu cerca de 20 mil profissionais do petróleo, nacionalizou ativos petrolíferos de propriedade estrangeira e permitiu que os aliados saqueassem as receitas do petróleo.
A indústria entrou em queda livre no ano passado, quando os Estados Unidos acusaram o sucessor e protegido de Chávez, o presidente Nicolás Maduro, de fraude eleitoral e decretaram severas sanções econômicas para forçá-lo a deixar o poder.
Logo, os parceiros petrolíferos, banqueiros e clientes da Venezuela romperam os laços, e a produção despencou em um ritmo que superou a desaceleração do Iraque durante as guerras do Golfo e a do Irã depois de sua Revolução Islâmica.
As sanções forçaram as últimas companhias petrolíferas dos EUA no país a parar de perfurar. Elas podem deixar o país definitivamente em dezembro se o governo Trump acabar com suas isenções de sanções.
Para compensar a perda de receita, Maduro recorreu à mineração ilícita de ouro e ao tráfico de drogas para permanecer no poder, de acordo com o governo dos EUA.
O afastamento de Maduro do petróleo deixou a economia venezuelana em declínio comparável ao da República Democrática do Congo, país atormentado por conflitos civis desde sua independência. Mas a transição permitiu que Maduro mantivesse a lealdade dos militares e resistisse às sanções dos EUA, segundo a analista Grais-Targow. Ela disse que os custos dessa contração econômica foram sentidos pelo povo venezuelano.
Mais de cinco milhões de venezuelanos, ou um em cada seis residentes, fugiram do país desde 2015, criando uma das maiores crises de refugiados do mundo, de acordo com as Nações Unidas. O país tem agora a maior taxa de pobreza da América Latina, tendo ultrapassado o Haiti este ano, de acordo com um estudo recente das três principais universidades da Venezuela.
Perto das enormes refinarias costeiras venezuelanas, os moradores procuram lenha e arrastam suas redes de pesca a pé para encontrar comida. Os barcos estão parados sem gasolina, e as cozinhas há muito tempo não têm gás.
“Se ainda não chegamos ao fundo do poço, estamos a centímetros disso”, afirmou José Giron, que costumava transportar turistas na cidade praiana de Tucacas, perto das três maiores refinarias da Venezuela.
Fonte: Exame